terça-feira, 27 de abril de 2010

Dente de leão




São Paulo, 18 de abril de 2010.

Minha querida Mônica,

Quero que saiba que estou escrevendo uma carta somente para você, pois sei que você saberá transmitir o recado para quem possa interessar, e que somente você minha irmã, tentará me compreender, pois, me conhece desde pequena e sabe que eu não sou uma má pessoa.
Mônica! Estou saindo de casa e quando você estiver lendo esta carta creio que estarei bem longe. Deixo marido, filhos, cachorro, casa, carro, vizinhos, emprego, conta no banco, Tv, celular, computador, levo comigo somente uma mala com algumas trocas de roupa, pois é isso que quero a partir de hoje para minha vida.
Não, não aconteceu nada para que eu tomasse essa decisão, nada de grave quero dizer, mas claro, vários fatos vêem ocorrendo, mas são tão minúsculos aos olhos de todos que tenho receio em contar que para mim são doses homeopáticas de veneno. Como por exemplo, lembra-se que no aniversário do nosso primo, o Tomás, eu estava triste e até um pouco depressiva e você me disse para começar a fazer exercício que eu me sentiria melhor. Pois bem, mesmo nem sabendo se eu queria de verdade ficar mais animada, feliz como você. É Mônica! Sempre admirei tanto sua facilidade de ser feliz, desde menina ria de cada coisa boba, dá vontade de chorar só de lembrar de você, da nossa infância, quando você enterrava tudo que era bichinho morto e se divertia imitando o padre Lourival. (Risos) Foi então que decidi caminhar no parque, naquele perto de casa (aquele que você vive dizendo que se um dia se desquitar vai procurar um marido sarado lá). Foi quando uma manhã, depois de alguns dias caminhando eu vi um dente de leão no canteiro lateral da trilha asfaltada – você sabe que florzinha é, aquela cheia de pelinhos, que a gente assoprava e fazia um pedido - e me deu uma vontade imensa de ficar descalça pisar na grama, mesmo vendo a placa de proibido pisar na grama, e ir pegar aquela flor para mim, mas eu ficava pensando que ali tinha tantos conhecidos, que iriam me ver e iriam contar para o Paulo, que iria pensar que eu estava louca, pois já tinha brigado com ele um dia porque citei a minha angústia de andar em calçadas o tempo todo, que cada vez mais me sinto presa por tantas normas e regras, por tanta educação. Agora todo mundo é politicamente correto, o mundo mais humano é tão desumano, tudo é reprimido, repreendido, e não são as coisas bárbaras e sim o nosso dia a dia. Eu por exemplo, não consigo mais tomar banho em paz. Fico pensando na quantidade de água que vai para o esgoto, mesmo fechando o chuveiro para me esfregar. Não agüento mais ter que ficar bonita, quero ficar velha, com cabelo branco e tudo, não quero ver minha família sentir vergonha de mim ou achar que estou maluca. Então foi quando colhi o dente de leão e ao invés de fazer o pedido, decidi realiza-lo pessoalmente, estou indo ser livre.
Escrevo mais algum dia.
Com amor, de sua irmã Lúcia.

(Bárbara do Amaral)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Uma carta




Bom dia!

Acabei de acordar e preciso correr, pois estou atrasado. Vou tomar banho, café, escovar os dentes. Mas antes vou ver um pouco do programa telecurso, pois está com um tema interessante sobre reciclagem.
Agora sim estou pronto as 07:00Hs, estou indo para Lapa, para fazer um trabalho sobre o teatro francês. Desculpe a letra tremida, mas agora estou no ônibus para o Jabaquara.
Agora são 8:00 Hs. Estou esperando o metrô e é interessante como as necessidades das pessoas são estranhas. Existe ao meu lado duas adolescentes sentadas e estão conversando sobre a necessidade de comprarem um mp5, pois assim poderão ver vídeo. Mas elas estão com um mp4 também acho possível ver vídeo nesse, porque a necessidade de algo potente?
São 8:39 da manhã. Estou na Luz. Está uma verdadeira loucura por aqui; as pessoas não respeitam a faixa amarela, e o metrô que está aqui... (desculpe, é o trem)... não irá sair, mas existem dois jovens aparentando 18 ou 19 A, que insistem em entrar como se quisessem desbravar o mundo mostrando que podem fazer o que ninguém faz. Chegou o meu trem.
8:55, faltam cinco minutos para eu dizer que estou atrasado tenho de correr, pois já estou na Lapa.
10:00 Hs – estou trocando de roupa pois vou fazer uma cena de rua dentro do mercado da Lapa.
013:00 Hs – tenho de voltar correndo para casa, pois tenho médico às 15:00 Hs
02:00 Hs – estou de volta no metrô. Você já ouviu Ana Carolina? É o som que estou ouvindo neste momento, acho relaxante depois de um estresse. Nem comentei de minha cena no mercadão, foi bem legal, rolou até polícia e para médicos de verdade.
14:47 Hs – acabo de chegar em casa exausto, vejo minha cama deste ângulo e me dá vontade de dormir. - vou tomar um danone e comer um pedaço de pizza, à noite como comida.
15:00 Hs – acabo de chegar no médico, estou atrasado ainda tenho de preencher ficha, mesmo sendo conveniado. Mas faz parte da burocracia.
16:00 Hs - acabo o check up. Acho que aparentemente tudo bem.
17:00Hs estou em um estúdio de tatuagem pois preciso marcar horário para ser atendido e saindo às 18:30 hs – preciso ir a São Mateus pegar um livro de um amigo para um trabalho para (amanhã ou) segunda. O rapaz dono do estúdio é músico e ele estava me dizendo que a arte não dá dinheiro por este motivo trabalha em uma empresa, acho que está pensando em desistir.
20:00 Hs – parei no shoopping ( ← nunca lembro se é com dois “o” ou dois “p”) bateu uma fome, enquanto como vou dando uma folheada no livro, tem um trecho interessante que diz “fazer o teatro com verdade”. Mas o que é fazer as coisas até mesmo em nossa vida com verdade? Será que não vivo de verdade? Bem vou pensar nisto.
21:44 – cheguei em casa e preciso ligar para um monte de gente para confirmar um monte de coisas para a amanhã, principalmente horários.
22:35 – agora estou simplesmente exausto e pensando em opções como – ou como ou tomo banho ou vejo TV ou durmo: acho que não me restaram forças pra tudo
23:57 – fiz besteira: sentei na frente da TV cansado e cochilei, vou tomar banho e comer.
00:30 – pronto, liguei um som baixinho e estou pensando no quanto as pessoas correm em seu dia dia. Nem sempre tendo tempo para pensar nelas, em suas necessidades físicas, mentais, psíquicas. Muitas vezes arrumando compromissos para quase 24 Hs por dia e não tem tempo de pensar em si.
Tomei um banho de dez minutos, acho que não dei metade da atenção que o pobre do meu pé que me carregou a todo lado merecia. Pensei hoje em comprar uma calça, mas tenho muitas. Acabo de comer mais pizza.
Será que depois de toda essa busca por coisas consegui mais uma vez me coisificar, ser mais um produto vazio?
01:33 – vou dormir, amanhã tenho que acordar cedo.

Cristiano Dantas

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Um olhar criativo para o cotidiano



Continuando nosso garimpo de leituras poéticas da realidade pós-moderna, exibimos hoje um post de Dalila Teles Veras, publicado em seu blog "À janela dos dias" em 29 de janeiro de 2009.
A poeta faz obra de arte com o lixo que atulha diariamente nossas caixas postais:

"Alguns dos "subjects" copiados dos emails recebidos hoje :

"Atraia a sorte e quem você quiser; Nova opção para sua saúde; Espero que você goste; The perfect gift for her; Ensine seu filho a cuidar do dinheiro; Limpamos CPF e CNPJ em apenas cinco dias; Torpedo para você; Jogos do seu time ao vivo no seu PC; Viaje no Carnaval; Convite para Profissional; Assista a mais de 1000 canais no PC; Agora ninguém mais viaja sozinho; Terceirização sem fraudar a CLT; Achieve exatly the sise you want; Viagra: save more buyng more; Never agree to be a loser; Vagas para revenda e distribuidor; Receita para um ano feliz; Como ganhar na loteria; Ano Novo TV nova; new 2009 collection; Aproveite as ofertas.

Respostas lacônicas e mal-humoradas: 

Não acredito; não há opção; não gostei; não gostou; não aprendeu; nunca estiveram sujos; machucou; não torço; detesto Carnaval; não tenho profissão; 1000 canais? para quantas vidas? Que pena! Terceirizar já é fraudar; não tenho preferência; não uso; perder faz parte do jogo; comércio não é meu forte; felicidade! ô palavrinha gasta! só perde para esperança!; não acredito em sorte; não assisto TV; não sigo tendências; desconfio de ofertas.

OBS.: Antes que alguém me julgue mal e acredite que já respondo a SPAMs, esclareço que as respostas ficaram apenas nas intenções, resmungadas, de mim para mim, enquanto me entregava à trabalheira diária em mandar para a lixeira eletrônica as centenas deles que entopem diariamente minhas caixas postais (a particular e a profissional), sem contar, nesse ato, o risco em deletar aquilo que é realmente correspondência e interessa. Ossos do ofício... (dtv)"

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Gertrude Stein



O teatro contemporâneo deve aos experimentos formais da escritora norte-americana Gertrude Stein (1874-1946) muitos de seus elementos.
Na esteira das rupturas propostas pelo Modernismo no início do século 20, Stein buscou romper com uma série de paradigmas dramáticos, propondo novas abordagens no terreno da linguagem, da noção de tempo, de ritmo, diálogo, ação, gênero e da própria estrutura da peça.

Sua proposta mais conhecida é a chamada “peça paisagem”: encenação que se observa como a um parque ou paisagem, sem os sobressaltos e tensões do drama convencional. Sem os avanços de tempo e as modificações espaciais a peça paisagem propõe um “presente contínuo”, algo difícil de imaginar e mais ainda de concretizar na cena na época em que foi proposta.

O pesquisador e professor alemão Hans-Thies Lehmann (1944) em seu “Teatro pós-dramático”, à página 103, esclarece que “Gertrude Stein não fez mais que transpor para o teatro a lógica artística de seus textos, o princípio do presente contínuo e progressivo de encadeamentos sintáticos e verbais que, como ocorre depois na música minimalista, parecem marcar o passo de modo “estático', mas na verdade são sempre acentuados de maneira nova em variações e modulações sutis. O texto de Stein já é de certo modo a paisagem. Em um grau até então inaudito, emancipa a oração em relação à frase, a palavra em relação à oração, o potencial fonético em relação ao semântico, o som em relação ao sentido”. Sem drama nem história, sem personagens definidos, privilegiando a dimensão sonora, as repetições, e a compreensão do teatro como “poesia cênica integral” - características presentes em um sem número de obras contemporâneas.

A obra de Stein abarcou o teatro, a ficção, a poesia, a crítica e a memória. Não é uma obra fácil de ser lida. Em teatro foram propostas tão radicais que ainda hoje a maioria de seus textos são considerados “impossíveis” de montar, mas influenciaram de tal maneira o encenador americano Bob Wilson (1941) que este chegou a afirmar que a leitura de Gertrude Stein deu a ele a convicção de que poderia fazer teatro.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Frases do nosso tempo




“As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender” nos ensina o cantor e compositor Paulinho da Viola em uma de suas canções. As coisas estão por aí, no mundo, acontecendo a todo tempo (e “o tempo não para”, como nos lembrou Cazuza). O artista é aquele que percebe o mundo à sua volta, o tempo que passa, os sentimentos que disso decorrem e, com isso, constrói sua obra.

O post de hoje é uma letra de música, reunião de frases ouvidas diariamente e que, de tão repetidas, já não percebemos o peso quando são ditas ou ouvidas. Mas, sempre atento às coisas do mundo e dos homens, Paulinho da Viola conseguiu transformá-las em arte.

Sinal Fechado

- Olá! Como vai?
– Eu vou indo. E você, tudo bem?
– Tudo bem! Eu vou indo, correndo pegar meu lugar no futuro... E
você?
– Tudo bem! Eu vou indo, em busca de um sono tranquilo...
Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é, quanto tempo!
– Me perdoe a pressa - é a alma dos nossos negócios!
– Qual, não tem de quê! Eu também só ando a cem!
– Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí!
– Pra semana, prometo, talvez nos vejamos...Quem sabe?
– Quanto tempo!
– Pois é...quanto tempo!
– Tanta coisa que eu tinha a dizer, mas eu sumi na poeira das
ruas...
– Eu também tenho algo a dizer, mas me foge à lembrança!
– Por favor, telefone - Eu preciso beber alguma coisa,
rapidamente...
– Pra semana...
– O sinal...
– Eu procuro você...
– Vai abrir, vai abrir...
– Eu prometo, não esqueço, não esqueço...
– Por favor, não esqueça, não esqueça...
– Adeus!
– Adeus!
– Adeus!


Para ouvi-lo interpretar, acesse o link abaixo:
http://letras.terra.com.br/paulinho-da-viola/48064

Você se lembra de mais alguma canção que trate dos sentimentos do nosso tempo?

terça-feira, 13 de abril de 2010

Pourquoi Lipovetsky?



Diversos filósofos, sociólogos,pensadores vem refletindo sobre a pós-modernidade. Alguns já se tornaram clássicos: o filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998), o crítico literário americano Fredric Jameson (1934) e o historiador inglês Perry Anderson (1938). Há também outros autores que, embora não abordem especificamente o tema, fazem uma reflexão profunda sobre o homem e a sociedade contemporâneos, o que nos ajuda a compreender o período em que vivemos – e a nós mesmos. São os filósofos franceses Gilles Deleuze (1925-2005), Felix Guatari (1930-1992), o também sociólogo Jean Baudrillard (1929-2007) e o pensador argelino Jacques Derrida (1930-2004).

Escolhemos, no entanto, um outro francês para dar início ao nosso estudo do contemporâneo: Gilles Lipovetsky (1944). Este filósofo vem, desde os anos 1980, empreendendo um esquadrinhamento do cotidiano, da realidade imediata de final e início de séculos, e é este material concreto que desperta suas reflexões sobre a pós-modernidade ou, como ele mesmo vem propondo, a hipermodernidade. Seu campo de ação se amplia a cada novo título: o individualismo contemporâneo, a moda, a ética e a moral, o luxo, a condição feminina. Seus estudos abraçam a cultura em geral, as artes, a psicologia, a sociologia, a educação, a política – sempre de forma crítica, mas quase nunca de maneira apocalíptica. Lipovetsky analisa o presente sem piedade, porém, consegue vislumbrar possíveis “viradas”, caso a humanidade se disponha a isso.

Com abordagem aprofundada, porém acessível a leitores que se debruçam pela primeira vez sobre o tema, seu livro “A era do vazio”, publicado em 1983, nos pareceu o mais indicado por vários motivos. Primeiro por apresentar uma retrospectiva da Modernidade com vistas à compreensão dos movimentos que a sucederam e que, ao contrário de negá-la, conservam, banalizam ou exageram muitos de seus princípios. Reflete sobre o papel do capitalismo de consumo, em substituição ao capitalismo de produção, na instauração do desejo como mola propulsora da pós-modernidade. E, além de tudo, trabalha temas essenciais quando se trata de criar e/ou analisar textos teatrais ou a própria realidade contemporâneos: consumo de massa, narcisismo-hedonismo-individualismo, questões de gênero e de classe, desencanto religioso e aumento de seitas e terapias, ansiedade e depressão, tempo-espaço e desterritorialização, hibridismo das formas, binômio arte e vida, interlocução de linguagens, novas tecnologias, desierarquização, corpo e fetichismo, convívio de opostos, liberdade, mas submissão ao consumo, desperdício, mercantilização e publicidade, reificação, declínio das metanarrativas, desinteresse pela militância política ou pelas revoluções, entre tantos outros.

Gilles Lipovetsky abre os estudos que serão aprofundados e ampliados nos encontros e, na medida do interesse de cada um, nas pesquisas individuais a partir da bibliografia recomendada.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Artaud e o teatro contemporâneo



Quando se trata de analisar o teatro contemporâneo alguns criadores devem estar presentes na base desse estudo. Um deles é o francês Antonin Artaud (1896-1948), a começar pelo fato de ter sido um artista múltiplo: poeta, dramaturgo, roteirista, ficcionista, ator e diretor.

Artista total, a princípio ligado ao movimento surrealista, Artaud logo trilhou seu próprio caminho ao propor novas abordagens das artes cênicas, como, por exemplo, o retorno ao ritual, a reconquista da comunhão entre os artistas e o público. Para isso era necessário ir além da palavra, além da estrutura fixada por uma dramaturgia. Ou aquém. Cavar, promover a prospecção de sensações que pudessem tocar o espectador no corpo e na alma, nos sentidos, nas emoções, sem, necessariamente, haver um entendimento lógico. O teatro vislumbrado por Artaud oferecia um reencontro com a materialidade cênica, um jogo com os sentidos dos participantes por meio da cenografia, do vestuário, das música, da luz, da voz e do corpo do ator.

Falaremos dele algumas vezes neste blog. Hoje damos destaque à pesquisa vocal desenvolvida por Artaud que extrapola a emissão de um texto e alcança ela mesma uma materialidade tal, que pode ser associada a um gesto, uma ação. Um pouco dessa pesquisa está registrada no link abaixo. Trata-se de uma gravação da peça -radiofônica “Para acabar com o julgamento de Deus”, levada ao ar em 1948, escrita e interpretada por Antonin Artaud pouco antes de falecer. O texto da peça encontra-se disponível em pdf no segundo link.

http://www.youtube.com/watch?v=HL5ycjxBweg&feature=PlayList&p=D326FC97D9851D52&playnext_from=PL&index=0&playnext=1


http://www.youtube.com/watch?v=iLSF544ELcg&feature=related

domingo, 4 de abril de 2010

Um teto todo seu



Virginia Woolf retorna ao nosso blog, ferindo a pedra das circunstâncias, a partir de um comentário feito por uma colega no nosso primeiro encontro do Ciclo.
Mariana, ao se apresentar ao grupo, disse o quanto pode ser frustrante, o quanto pode ser emburrecedor o fato de não se trabalhar no que gosta. Dedicar oito horas do seu dia a afazeres que nada tem a ver com o seu talento, suas ambições, porque é preciso ganhar a vida de alguma forma. E o tempo que resta ser dividido no cumprimento de outras obrigações, no descanso e, quem sabe, só depois, no exercício de uma atividade criativa e prazerosa. A fala de Mariana encontrou ressonância em muitos dos colegas, pois é fato que, ao menos no Brasil, poucos artistas tem o privilégio de se manter por meio da própria arte.

Acrescento ao problema levantado, infelizmente, a questão de gênero. Digo infelizmente porque estamos no século 21 e essas abordagens a respeito da diferença entre homens e mulheres deveriam ter ficado no passado. Espero estar errada, espero que algum internauta me corrija, com provas irrefutáveis quando digo que para a mulher a situação continua mais difícil. Como se dedicar à poesia, à literatura, à arte em geral quando se tem de cumprir jornada de trabalho para garantir o sustento da família e, ao voltar para casa, dar conta das tarefas domésticas, cuidar dos filhos, preparar a comida e, quando se consegue, descansar, para começar tudo de novo no dia seguinte? Que espaço, que energia sobram para a dedicação à arte, a alguma atividade criativa?

E não falo só da chamada “mulher do povo” - essa talvez nem tenha tempo ou informação suficientes para reconhecer em si uma possível necessidade de arte. Me atenho à realidade do Ciclo de Estudos, formado, em sua maioria, por mulheres que trabalham em casa e fora dela e que, tenho certeza, tem de empreender um grande esforço para estar presentes nas noites de quinta-feira, com os textos lidos e estudados, com material para contribuir nas discussões. Tempo para ler esse post – que eu escrevo antes de preparar o almoço, arrumar a cozinha e cuidar de pessoas que precisam de mim.
Prometo em outra ocasião defender os interesses masculinos. Hoje, domingo de Páscoa, dedico às mulheres, citando, mais uma vez, Virginia Woolf.

Trata-se do livro “Um teto todo seu”, publicação de dois ensaios da autora a respeito do tema “a mulher e a ficção”, lidos em público em 1928. Neles Virginia procura demonstrar o quanto as circunstâncias até então impediam a mulher de se dedicar à literatura e às artes. A certa altura ela descreve uma situação bastante parecida com a do testemunho de Mariana ao dizer que, antes de receber uma herança que garantiria seu sustento para o resto da vida, se dedicara a mendigar “trabalhos esporádicos nos jornais, fazendo reportagens sobre um espetáculo de burros aqui ou um casamento ali; ganhara algumas libras endereçando envelopes, lendo para senhoras idosas, fazendo flores artificiais, ensinando o alfabeto a crianças pequenas num jardim de infância”, pois “tais eram as principais ocupações abertas às mulheres antes de 1918”.
Virginia diz que, mesmo não precisando mais desempenhar tais tarefas para sobreviver, ela ainda guarda a sensação “do veneno e da amargura” que aqueles dias geraram nela. “Para começar, estar sempre fazendo um trabalho que não se queria fazer e fazê-lo como uma escrava, lisonjeando e adulando, nem sempre necessariamente, talvez, mas parecia necessário e os interesses eram grandes demais para se correr riscos; e depois a ideia daquele dom único que era morte ocultar (um dom pequenino, porém caro para sua possuidora), perecendo, e, com ele, o meu ego, a minha alma (...)”.
Será que isso ficou distante, na Inglaterra do século passado?

Para conhecer mais profundamente as ideias da autora e saber o que, para ela, é fundamental que as mulheres conquistem se quiserem viver dos seus talentos artísticos basta ler os ensaios na íntegra – o que podemos encontrar no link abaixo:

http://brasil.indymedia.org/media/2007/11//402799.pdf

Feliz páscoa a todos.