quinta-feira, 15 de julho de 2010

Coralidade - Parte II


(Conclusão do post anterior)

"Podendo funcionar como princípio único de composição, a coralidade dramática permite associar forma lírica e conteúdo épico; deste modo, a noção é particularmente utilizada para a análise de um teatro visando menos narrar do que expor os limites do ser no todo e propondo fazer um ato de memória a partir das feridas da História e desmoronamentos do laço social ([Peter] Weiss, L’Instruction; [Michel] Vinaver, 11 septembre 2001; Groupov, Rwanda 94). As três obras corais aqui assinaladas apresentam todas uma ligação estreita com a música.


A recente aparição da noção do discurso crítico assinala mais uma evolução das formas dramáticas do que uma modificação do olhar dos especialistas sobre as obras. Contudo, aparece inevitável hoje encarar o texto dramático numa relação com as estéticas que lhe são vizinhas. O recurso à noção de coralidade, transversal por definição, permite convocar, ao lado das obras dramáticas, objetos estéticos com destaque para a música, dança, artes plásticas e reconsiderar, por exemplo, o propósito brechtiano sobre o papel do distanciamento que tem a música de um espetáculo. Em suma, a coralidade toma partido da dispersão das estéticas e do apagamento das fronteiras entre as artes.


A coralidade, encarada como um campo do qual ainda é preciso medir os desvios e variações, permite explorar as diferentes modalidades estéticas das novas formas teatrais de dividir uma voz e, transitivamente, questionar o ser conjunto. Assim como propõe Christophe Triau no artigo da revista citada anteriormentei, é pertinente encarar a coralidade não somente sob uma espécie de burburinho de vozes anônimas, mas também como um processo dialético, ou colocar em tensão, de duas forças contrárias, patentes no jogo cênico, assim como na profundidade do “personagem” coral: seria assim coral uma tendência de composição, própria do jogo dramático ou da escrita, que consiste ora em singularizar a individualidade, ora em fundi-la no coletivo. Vê-se que o paradigma temporal é central na abordagem da coralidade.


No entanto, coloca-se a questão de saber se, no momento em que os paradigmas formais forem comodamente abolidos, melhor que evocar “a” coralidade não seria preferível singularizar uma coralidade de [Valère] Novarina, diferente da de [Michel] Vinaver e sem relação com a de [Didier-Georges] Gabily, tanto a paisagem do drama contemporâneo é semeada por irredutíveis formas corais."


Nota:

i Christophe Triau, “ Choralités diffractées: la communauté en creux”. in Alternatives théâtrales, nº 76-77, op. cit., p. 5-11


MÉGEVAND, Martin. Choralité. In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org)Nouveaux territoires du dialogue. Arles : Actes Sud-Papiers, 2005. p. 36-40. (tradução de Mônica dos Santos)


(A ilustração deste post é uma foto do espetáculo Suíte nº 1, de Philippe Minyana, encenado pela curitibana ompanhia Brasileira de Teatro, com direção de Márcio Abreu)

terça-feira, 13 de julho de 2010

Coralidade - Parte I







A coralidade se mostra dos recursos mais utilizados na dramaturgia contemporânea, nosso objeto de estudo. O texto abaixo, em duas partes, é a tradução feita por Mônica dos Santos de um artigo publicado no livro Nouveaux territoires du dialogue, cuja referência encontra-se no final do post.


"Há termos que se tornaram indispensáveis à crítica e que os dicionários de retórica ainda ignoram: a coralidade é um deles. No espaço de vinte anos, esta noção exposta primeiramente por Jean-Pierre Sarrazac em L’avenir du drame em 1981, é pouco a pouco imposta como uma ferramenta de análise indispensável de textos dramáticos, assim como de muitos espetáculos contemporâneos; ao ponto de uma rica edição de Altenatives théâtrales de março de 2003 ter sido consagrada a este temai: sua leitura permite mensurar a amplitude de problemas abordados por esta noção e as contradições que ela coloca. Tentar circundar seu conteúdo ou delimitar seu campo de aplicação impõe certamente cruzar muitos domínios de conhecimento e diferentes abordagens teóricas e técnicas, o que é a fonte principal das dificuldades e da riqueza de seu emprego. Deste modo, é possível, para abordar a coralidade, associar história das artes do espetáculo e retórica do drama contemporâneo, e até mesmo questionar o futuro pós-dramático do drama: interessa-nos então a literatura dramática e o lugar do texto na paisagem teatral contemporânea. Mas recorrer à noção de coralidade pode também servir para qualificar e explorar estéticas híbridas, próximas da instalação, que não se apóiam mais que sumariamente sobre textos ([Bob] Wilson, [François] Tanguy, [Romeo] Castellucci). Enfim, pensar o teatro sob o ângulo da coralidade convida a explorar a ligação entre literatura e filosofia pelo viés da questão comunitária. Outras pistas podem ser relacionadas aos três domínios esboçados a seguir. Citamos a questão retórica, ainda pouco explorada, da liricizaçãoii do drama pela função do coro; sociológica, do tropismo ritual, ou cerimonialista, que se observa nas cenas contemporâneas (notadamente desde [Jean] Genet), enfim, filosófica, dos vínculos do drama e da história: a coralidade nasce onde o coro não é suficiente, por diversas razões ainda não determinadas (fim das utopias e das ideologias, dissolução da comunidade nas comunidades) e instala-se nas cenas ocidentais de modo permanente. É inevitável que a coralidade, transformada na mais nova peça chave do xadrez crítico do drama contemporâneo, tenha os contornos de seu campo de aplicação difíceis de delimitar. Aparece então o risco de uma profusão asfixiante e a necessidade de fixar seus conteúdos: a minima, entende-se por coralidade esta disposição particular das vozes que não dá destaque nem ao diálogo, nem ao monólogo; que requerendo uma pluralidade (um mínimo de duas vozes), contorna os princípios do dialogismo, sobretudo reciprocidade e fluidez dos encadeamentos, em benefício de uma retórica da dispersão (atomização, parataxeiii, explosão) ou do entrelaçamento de diferentes cantos que se respondem musicalmente (étoilementiv, sobreposição, ecos, todos efeitos da polifonia). O termo é útil em pontuar uma maneira, que varia segundo cada autor, de suprimir as falhas do diálogo: evocar a coralidade de um dispositivo, é sobretudo encará-lo sob o ângulo da difração das palavras e das vozes num conjunto refratário a toda totalização estilística, estética ou simbólica. Neste sentido, a coralidade é o inverso do coro. Ela postula a discordância, quando o coro - ao menos como o entendiam os gregos - carrega sempre, de modo mais ou menos explícito, o traço de um idealismo do uníssono.


Entretanto, do ponto de vista do desenrolar do tempo, a coralidade interpreta dentro do tecido dramático um papel próximo daquele que outrora tivera o coro do teatro. Ela produz diversos efeitos sobre a temporalidade dramática: retardando o desenrolar do diálogo como veículo da ação, ela impõe uma modalidade temporal suspensiva por excelência, mesmo se variações de ordem diversas podem neste aspecto ser observadas. A noção é então particularmente empregada desde o oximóricov “drama estático” de [Maurice] Maeterlinck. Se ela se aplica de maneira eficaz às formas dramáticas modernas desde que o drama entrou em crise, ela é dificilmente dissociável da estética do fragmento e das diferentes modelizações da forma aberta: redução, isto é, o desaparecimento da tríade exposição-conflito-desfecho em benefício de uma retórica da disseminação, da microestrutura ou da composição em quadros. O terreno expressionista é particularmente propício às florescências corais. Mas parece difícil assinalar o ato do nascimento da coralidade na história das formas dramáticas: tratar-se-ia , de preferência, de uma tendência, cada vez mais apoiada historicamente, de fazer variar o diálogo em todos os tipos de figuras que se assemelham ao étoilement ([Maurice] Maeterlinck, Les aveugles), à dispersão aleatória ([Philippe] Minyana, Les Guerriers), à serialização ([Valère] Novarina), a uma disposição em escala das vozes ([Michel] Vinaver)."


Notas:

i “Choralités”, Alternatives théâtrales, nº76-77, Bruxelles, 1° e 2° trimestres de 2003.

ii NT. Apesar do termo no francês ser lirisation optamos por empregar liricização do verbo liricar que é o mais próximo que existe em português.

iii NT. Segundo o dicionário Houaiss: “Sequência de frases justapostas sem conjunção coordenativa”.

ivNT. Termo ainda em tradução. Possível sentido de "estrelamento": extensão de uma forma central em raios que lembram uma estrela, ou simplesmente, em forma de estrela.

v NT. Segundo Houaiss: Figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão (por exemplo, obscura claridade, música silenciosa)


MÉGEVAND, Martin. Choralité. In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org)Nouveaux territoires du dialogue. Arles : Actes Sud-Papiers, 2005. p. 36-40. (tradução de Mônica dos Santos)


(A ilustração deste post é uma foto do espetáculo Suíte nº 1, de Philippe Minyana, encenado pela curitibana ompanhia Brasileira de Teatro, com direção de Márcio Abreu)

terça-feira, 6 de julho de 2010

As intensidades da vida



Duas postagens atrás comentávamos sobre algumas regras básicas para se conseguir um bom drama. Levantamos quatro delas, a partir de uma entrevista publicada no jornal Estadão com uma roteirista americana. Um dos comentários do post, feito por Carina Freitas, me fez lembrar de uma quinta regra de ouro: a intensificação das ações.


É como se naquele bloco de 90 minutos, que em média pode durar um espetáculo teatral, ou num episódio de série, ou num filme, não coubessem coisas dispensáveis, supérfluas. O que há de mais importante naquela ou naquelas trajetórias foi condensado para nossa apreciação. Na tragédia de Édipo Rei, para ficarmos com o exemplo mais conhecido, a peste é noticiada, a investigação é feita, o passado é revelado, o culpado se redime, as punições acontecem e ainda há fios a serem intensificados ou resolvidos nas próximas peças da trilogia tebana.


Carina reconhece que a vida é sorvida aos poucos - se fosse como nos filmes ou nos dramas será que suportaríamos tanta tensão?


Na vida a intensidade se dá, muitas vezes, ao longo do tempo. Não tem as urgências de um capítulo, nem a estratégia de blocos que devem terminar com um “gancho” que nos prenda até depois dos comerciais ou até o próximo episódio. Temos tempo para que um desejo se transforme em vontade, e mais tempo ainda pra virar realidade. Talvez por isso busquemos na arte e em algumas outras práticas essa intensidade momentânea que, paradoxalmente, nos lembra que estamos vivos.


Carina diz que as peças que lemos no ciclo são mais parecidas com a vida do que os episódios das séries. Talvez seja porque a dramaturgia contemporânea, daquela parcela dita não mais dramática, parece não se importar tanto com a regra da intensificação da ação. Ou parece trabalhá-la de outra maneira. A rotina ganha espaço na cena. O casal simplório de Alta Áustria, de Kroetz, mastiga seu dia a dia sem graça, que só se vê abalado com a possível chegada de um filho – quem sabe aí haverá intensidade. Há toda uma dramaturgia denominada “do cotidiano”, que busca revelar o que há de grandeza – ou de pequenez – nos atos mais simples. Essas peças nos servem também de espelho, como os grandes dramas. São uma espécie de oposição ao que prega a pós-modernidade: viver sem limites, arriscar-se, ousar, ser diferente, “original”.


Retornemos a Psicose 4h48, tão comentada nesse blog. Sua intensidade não está nas ações. Ela se situa em outro patamar. Psicose talvez nos seja próxima pelas articulações mentais, pelos desbordamentos emocionais, longe de caracteres (personagens) delineados, vontades articuladas, linhas de objetivo, superações e conclusões. Há uma intensidade do sofrimento que, aliada ao tratamento da linguagem e da forma, também nos prende e desperta compaixão.

Continuemos a refletir...


(Adélia Nicolete)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Juventude e nova dramaturgia



Vão aqui algumas impressões sobre o poder de atração que a dramaturgia de Sarah Kane exerce, em especial a peça 4.48 Psicose.

Com as discussões no Ciclo de estudos fermentando na cabeça pensei em certo desdém com a mão dos dramaturgos que percebo em alguns atores jovens e a defesa de cena de espetáculos contemporâneos que privilegiam os elementos visuais, corporais, musicais, muitos realizados em ruas, galpões, viradas culturais, prédios etc.

Muito razoável, visto que teoria e prática do teatro pós-dramático (estudado no Ciclo) ganham esguichos no terreno da busca pela melhor comunicação “palco”/público de hoje em dia.

Imagino que talvez não seja propriamente a palavra, mas as estruturas de dramaturgia conhecidas que dão um bode nesses atores, legitimamente despreocupados com cânones, regras, pavimentos teóricos.

4.48 Psicose é um texto recente, escrito na virada do século. Sarah Kane o escreveu aos 28 anos, ela também uma jovem.

O texto tem estrutura nada tradicional, momentos muito subjetivos, com indicação tênue de situações e aberto às mais diferentes maneiras de encená-lo. Não há vícios no seu corpo “dramatical”.

Creio como consenso a sua força, a porrada, vísceras. Mas não saltadas aleatoriamente pra fora do ventre, e sim vísceras organizadas poeticamente por uma dramaturga. Mesmo vivendo, segundo consta, numa câimbra de depressão e desespero, Sarah provavelmente sabia onde por os pingos, mas não queria necessariamente optar pelos “is”.

Jovens artistas são assim, jovens atores são muito assim (por que o público jovem também não seria assim?...).

Em resumo, percebo o prestígio de 4.48 Psicose nesses ávidos agentes. Um texto aberto a possibilidades de interpretação e recriação, escorado em passionalidade, em tudo ou nada, em fio da navalha, mas, fundamentalmente, num “sai pra lá” dramaturgia conhecida e entendida. E isso pressupõe um “novo” (pensamento, experimento...ator?).

O texto de Sarah Kane é muito particular. Assim como são particulares os exemplos de espetáculos contemporâneos que vimos no Ciclo. Espetáculos muitos deles encenados em ruas, galpões, viradas culturais, prédios, e mesmo em teatros.

4.48 Psicose desafia o estudo e desafia o dramaturgo a se virar perante a acolhida entre os jovens – atores e público – por textos que lancem palavras de um novo trampolim, mais alto, mais arriscado, cuja queda molhe a todos que estão por perto. Um salto com estilo variado, às vezes até sem som.

O estudo de dramaturgia contemporânea revela experiências teatrais – em geral de companhias experimentais – como uma puxada de tapete no credo, no conhecido, um salto ornamental inseguro que provoca, que atrai.

Vê-se que Sarah Kane pulava do alto.

(Alessandro Toller)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

“Autora dá a receita de um bom drama”




Este é o subtítulo de uma entrevista publicada no caderno TV do jornal O Estado de S. Paulo em 13 de junho passado.


A autora em questão é a roteirista norte americana Liz Tigelaar, responsável pela criação da série Life UneXpected e de episódios das séries Brothers & Sisters, Dawson's Creek, American Dreams, entre outros.

Ao final da entrevista a repórter pergunta o que um bom drama deve ter para ser bem-sucedido. Liz responde:


o elemento mais básico é se importar e cuidar dos personagens. Eles têm de querer muito algo e têm de ter defeitos e obstáculos que os impeçam de alcançar o que querem. A maioria das séries em que trabalhei tinha uma família ou um grupo de amigos que era como uma família e acho que isso faz um drama de sucesso. Fora os triângulos amorosos... Mas as pessoas precisam se identificar com os personagens, criar uma conexão, acompanhar os obstáculos e as superações.”


Ao afirmar isso com a segurança de quem alcança muitos pontos de audiência, Liz reproduz o que as poéticas determinam há séculos quando se trata de teatro dramático, novela, cinema comercial. 1) Relações dramáticas fortes. A primeira delas é entre amantes, pessoas apaixonadas. Em seguida vêm as relações familiares, depois os amigos, os inimigos, até chegar aos indiferentes – que, como o nome já diz, deve causar pouco ibope.

2) Personagens definidos, que causem empatia. Por empatia podemos entender simpatia ou antipatia. A esse rol pertencem aqueles vilões que amamos odiar, os heróis com quem nos identificamos, as heroínas abdicadas a quem admiramos, o tolo por quem sentimos compaixão, as crianças que já têm duras provas a enfrentar, e até aquele cachorro fiel, não importa se bobo ou esperto.

3) Vontades firmes. Nosso papel de espectadores é acompanhar a realização do desejo do personagem. Numa peça ou filme isso pode levar até duas horas. Numa novela pode levar meses. As produções mais modernas optam por desejos realizáveis a curto prazo, inspiradas nas séries. No máximo uma semana. Mas, se repararmos bem, um desejo central acompanha praticamente a novela toda.

4) Obstáculos, conflitos que estejam à altura da força e da valentia do personagem, à altura da força do seu desejo e do seu merecimento. Esses obstáculos podem ser internos ou externos. Se internos o medo, a covardia, um trauma, um defeito. Se externo a moral, a sociedade, o Estado, a crença, o inimigo, o rival. Para a superação desses obstáculos o personagem conta com o grupo familiar, os amigos, mas há casos em que luta sozinho, o que o torna mais valoroso. Quando supera, ainda que temporariamente, as adversidades, o público vibra. E quanto mais ele sofre, mais a audiência suspira, verte lágrimas e corre pra acompanhar o próximo capítulo.


Bem, as peças que lemos durante o Ciclo e os textos que estudamos foram na contramão dessas fórmulas.


Um espaço aqui para a reflexão....................