(Beatriz Milhazes - Bea - 1993, acrílica sobre tela, 110 x 130cm)
A velha Beatriz olha por um longo tempo um longo tecido branco que está em suas mãos. Está sentada na varanda da grande casa velha, flores murchas, ar seco, céu cinza. De um lado, um grande cesto cheinho de linhas coloridas, de tantos tamanhos e formas. Do outro, uma cadeira velha, vazia.
Pega o primeiro bolo de linha ao acaso. Vem o azul. E Beatriz vai bordando então com seus dedos enrugados grandes círculos, círculos infinitos. Círculos de flores, pequenas, grandes, como grandes e pequenos colares de contas de flores. Flores azuis. Pensa nos miolinhos das flores. Pega a linha rosa. Borda então miolinhos rosas nas flores azuis. E no mesmo instante, em uma brisa de vento suave, pequenas flores suspensas em forma de contas vão brotando no umbral da porta, nos parapeitos da varanda, nos vãos das janelas, nos rodapés... Brotam jardins suspensos, muitos mundos, círculos infinitos.
Beatriz borda então flores amarelas e verdes, e infinitas contas de flores amarelas e verdes vão cobrindo as paredes enegrecidas da velha casa. E o chão cheio de poeira vai se tornando um grande tapete de flores enfeitado. E o ar começa a ter um cheirinho doce de alfazema.
Beatriz borda um céu lilás e um grande sol amarelo e imediatamente o dia nublado se ensolara em nuvens tão delicadamente lilases com um sol forte e amarelo que a cor do dia é uma mistura de dia e noite em um infinito.
Beatriz pensa então em bordar em meio há tantas flores, uma jovem que borda sentada em uma cadeira em uma varanda. Pensa em começar pelo vestido. Lembra de um que teve um dia: branquinho, até o joelho, mas que tinha dois peixinhos bordados, um vermelho e outro azul no barreado. Começa a bordar e imediatamente seu vestido puído e desgastado se transforma em um lindo vestido branco com dois peixinhos coloridos.
Beatriz continua bordando e seus pés se tornam macios e branquinhos, como seu vestido, e neles, pequenas sandálias cheinhas de miçangas em cor púrpura vão surgindo. Suas mãos vão ficando mais ágeis, pois acabara de bordar as mãos delicadas da jovem. E de seus braços, vão desaparecendo as manchas de tantos sóis que teve em sua vida, e de seu colo, vão desaparecendo os sulcos vazios da pele enrugada de tantas noites dormidas encolhida, se enrolando em si mesma. E seu rosto chupado, murcho, vai dando lugar a outro rosto: pele clara, cor da luz da lua. Os vincos, os traços tristes vão desaparecendo um a um como rios que secam e se transformam em campina branca, branquinha.
Beatriz borda e seus cabelos brancos se enegrecem, os fios de repente crescem por sobre os ombros e então borda também uma linda grinalda de pequeninas flores de laranjeira. No mesmo instante nascem uma a uma, pequeninas flores enraizadas em seus cabelos em um círculo sem fim.
E, bordando, Beatriz percebe ao seu lado, naquela cadeira vazia, que vai surgindo um jovem que veio do tempo antigo, alguém que ficou por tantos anos esquecido e que agora retorna corpo forte, sorriso conhecido. E num eterno beijo, Beatriz borda em volta do casal, mais e mais colarzinhos de flores, envolvendo os dois num grande abraço que fica parado no tempo, que fica suspenso no ar.
(Texto de fantasia criado por Solange Dias e inspirado em tela homônima de Beatriz Milhazes)