Fernando Burjato - Sem título - acrílica sobre mdf, 30 x 45 cm.
2006
Duas da manhã.
Falta luz.
Martina resolve ensaiar piano.
(Ela não precisa de luz: um teclado são tiras justapostas com algumas balizas aqui e ali. Os dedos enxergam)
Eu, que preciso de olhos, permaneço imóvel.
Martina toca e o som que ressoa no apartamento parece atravessar as paredes e derramar-se no prédio inteiro. As notas escorrem pelas escadas, cruzam a avenida, cobrem a mureta da praia e misturam-se ao mar. Sinfonia.
Outra camada espessa de som pavimenta as ruas do bairro, carregando consigo homens, mulheres, táxis, feito esteira rolante.
Não preciso de olhos. A dança-vertigem me leva e eu giro, e giro, e giro.
Peço pra que a luz não volte.
Pra que Martina toque até seus dedos sangrarem e,
ao escorrer
pelas
escadas,
o som vermelho
amanheça o dia.
(Adélia Nicolete)
(Este texto, em primeira versão, foi baseado na apreciação descrita na postagem anterior. A proposta foi de um relato com, no máximo, 15 linhas, em primeira pessoa, escrito em até 30 minutos.)
2ª versão (escrita em janeiro de 2013)
Madrugada.
Falta
luz.
Martina
resolve ensaiar piano – teclados são tiras justapostas com alguns
sinais aqui e ali: os dedos enxergam
Eu,
que não toco, permaneço imóvel.
…
.....
… . . .. . . ....
As
primeiras notas alcançam meu peito
e é
incrível o modo como me atravessam
preenchendo
a sala e
habitando
os móveis e
não
podendo mais de tanto som
transbordam
pelo vão das portas
alcançando
o
cor
re
dor.......
… .. . ….. . … …. …. ….
Madrugada.
Martina
e sua música escorrem pelas escadas,
andar
por andar.
Penetram
os sonhos das adolescentes,
confortam
o sono dos moribundos,
iludem
o vigia
que
destranca a porta pensando que o Anjo chegou mais cedo.
Livres,
cruzam a avenida, cobrem a mureta da praia e misturam-se ao mar.
Sinfonia
que
embala os enamorados na areia
e faz
o mundo girar
girar
girar
girar..
.. .. .. .. .. .. . . . . . . . .
Que
a luz não volte
pra
que Martina toque até seus dedos sangrarem e
alcançando
o horizonte
o
som vermelho amanheça o dia.