segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

"PRAZER", do Luna Lunera ou "UMA APRENDIZAGEM DO TEATRO CONTEMPORÂNEO"


Há espetáculos a que assistimos, mas não encontramos tempo de escrever a respeito. Há também que não despertam qualquer vontade de escrever. E há outros a que à delícia do encontro junta-se um pedaço de madrugada livre para anotações e aí o texto acontece. Foi assim com Prazer. 
Abaixo, alguns escritos irresponsáveis.


Cena de Prazer
(Foto: Lenise Pinheiro)


Em duas temporadas no CCBB de São Paulo, o grupo mineiro Luna Lunera traz ao cartaz seu mais recente espetáculo, Prazer. Fruto de uma criação em processo a partir da literatura, desta vez toma a obra de Clarice Lispector como referência – em Aqueles dois, criação anterior, um conto de Caio Fernando Abreu fora o detonador da cena.

É basicamente um recorte na história de quatro amigos que a vida tratou de separar fisicamente ou não e que, certo dia, reencontram-se fora de seu território, aproveitando o confinamento a que estão submetidos para retomar questões, revelarem segredos e reafirmarem laços. Mais não digo, para não impor o meu ponto de vista sobre o trabalho, atrapalhando futuras apreciações.

São três atores e uma atriz, num espaço à italiana, sem a quebra da quarta parede. Há uma fábula perfeitamente compreensível, personagens definidos, começo-meio-fim, conflitos, saltos qualitativos e quantitativos, linha de ação direta e, para completar, um final coerente com todas as ações anteriores. Uma dramaturgia que tece aos poucos e d e forma inteligente o enredamento dos fios de cada um. Honram a fonte ao abordar angústias existenciais, desconfortos de alma e problemas de relacionamento entre o feminino e o masculino. Em suma, tem absolutamente todos os ingredientes de um drama convencional, porém o grupo transforma todo esse material em plataforma de lançamento para uma dramaturgia e uma encenação alcançarem esferas muito além da forma dramática. Isso é conseguido por meio de recursos próprios do teatro contemporâneo: fragmentação, variação-repetição, hibridismo de linguagens, novos tratamentos para as noções de tempo e espaço são apenas alguns deles.

A certa altura do espetáculo um dos personagens afirma que onde quer que a gente vá, leva a si mesmo junto. Não há como fugir, nem como se perder, estamos condenados à nossa companhia. Dentre as inúmeras entradas possíveis para uma análise do espetáculo, escolhi essa. Parece-me apropriada a um espectador contemporâneo, convidado a ser um co-criador da cena: não tendo feito parte do processo, ele também só tem a si mesmo, às suas referências, ao seu repertório, enfim, para estabelecer relação com a obra e, a partir disso, construí-la ao mesmo tempo em que a assiste.




Cláudio Dias e Isabela Paes
(Foto: Lenise Pinheiro)


Começo a escavar o alicerce dessa construção de sentido pelos meus 15 anos, idade em que assisti ao primeiro espetáculo de teatro adulto: a eficiente comédia O dia em que raptaram o papa, do carioca João Bitencourt. Dentre as coisas de que me lembro – e que ligaram-se de imediato ao novo trabalho do Luna Lunera – estão uma torneira que vertia água e personagens comendo de verdade em cena. Mas que abismo separa essas duas ocorrências!

Naquele, o naturalismo assumido como verdade: é preciso convencer o público de que isto é uma cozinha, e logo ali está a sala com seu sofá e seus abajures, a sua janela que abre e que revela um jardim, e assim por diante. Neste, o naturalismo teatral sofre tamanha releitura, que chega a tangenciar o naturalismo na própria vida com seus simulacros de amor, alegria, amizade, prazer. Muitas falas parecem brotar na hora, num improviso dos atores, tamanha a coloquialidade e a prontidão com que são enunciadas. Fala-se com naturalidade de sentimentos que não estão claros. Por vezes descobrem o que sentem na medida em que enunciam o espanto. Descobrem modos de driblar a fatalidade, arriscam-se a um naturalismo que possa salvá-los da complexidade e do desconforto que é existir. Tais falas contrastam, porém, com as citações de Clarice e é justamente quando parecem não falam por si próprios que os personagens mais se revelam e à sua verdade.

Um detalhe processual: na comédia de João Bitencourt, a comida foi trazida pronta para a cena. Aqui, o que se comeu foi misturado e amassado na hora, levado ao forno e assado no tempo que levam algumas descobertas dos personagens. Se a peça pronta levara ao espetáculo, hoje ele se estabelece no misturar e amassar diários dos ensaios, e sua assadura e consumo fazem-se diante do público e, de certo modo, com ele. A água da torneira dos anos 1980 era apenas uma demonstração dos recursos da produção, pois totalmente dispensável à fruição da obra. Os canos de 2012 vertem água que lava, purifica e, quem sabe, faz renascer novos eus dentro dos velhos conhecidos.

Lembro também, na montagem de mais de 30 anos atrás – para aquele tipo de proposta falava-se em “montagem” da “peça” (texto), hoje falamos de criação em processo, já que a “peça”, muitas vezes, nunca chega a se constituir plenamente – lembro da marcação cênica com suas entradas e saídas estratégicas que geravam o riso. Havia duas ou três portas, levando à “rua” ou às dependências internas da “casa”, facilitando perseguições, esconderijos e fugas dos personagens. Lembro-me também da perfeita adequação entre texto e corpo, ou seja, os intérpretes esmeravam-se em fazer corresponder suas falas aos gestos e expressões. No espetáculo desta noite os atores ora correm das palavras, ora fogem delas pelo lado oposto, atiram-nas aos demais; gritam ou segredam em passos de dança, em perseguições, num desconforto entre a alma que quer e precisa expressar-se e o corpo que ora a contém, ora não consegue evitar que ela se derrame. Tudo num espaço sem uma porta sequer, e que, no entanto, permite que os amigos estejam em casa, num avião ou mesmo à beira mar.

À claridade e ao espaço cênico gigantesco da comédia de minha adolescência – quando eu ainda não conhecia Clarice Lispector, nem tinha a necessidade de – vem contrapor-se o claustro permanentemente na penumbra do espetáculo desta noite, metáfora do espaço interno de cada um, os escuros de dentro, em que personagens se amam e se debatem, sendo um só, embora sejam tantos.




Odilon Esteves
(Foto: Lenise Pinheiro)


Continuando as escavações, percebo que foi naquela mesma época que tomei contato com um autor que marcou por um bom tempo a minha paixão pela leitura: Fernando Sabino. De suas crônicas publicadas na coleção “Para gostar de ler”, da editora Ática (a mesma da coleção “Vaga-lume”, citada no espetáculo) saltei para seu livro mais famoso: O encontro marcado. Romance de geração e de formação, publicado em 1956, com fortes traços autobiográficos, trata da amizade entre quatro moços e uma moça e dos caminhos percorridos por eles até a idade adulta, quando se reencontram na data estabelecida por um pacto na juventude. Dúvidas existenciais, descoberta da sexualidade, incertezas quanto ao caminho tomado, traições, medos, busca da felicidade e toda uma série de componentes são orquestrados por Sabino que, paralelamente, vai traçando a evolução da cidade de Belo Horizonte.

Foi inevitável não lembrar dele ao ver aqueles três mineiros e uma mineira em cena, num encontro há muito planejado, mas nunca realizado. Um encontro não mais em Belo Horizonte, mas fora do Brasil, território do desconforto. Nenhum deles está confortável em sua própria pele e o lugar que escolheram para viver/estar tampouco os localizam. No entanto, trata-se de um encontro marcado consigo mesmos ou com o que cada um fez de si e, nesse processo, iluminam-se uns aos outros, espelham-se também em busca do próprio ser naquele que não sou eu.
Li praticamente todos os livros de Fernando Sabino, mas hoje avalio sua literatura mais ou menos como avalio O dia em que raptaram o papa: uma satisfação restrita à adolescência.

Tempos depois cheguei a Clarice Lispector, justamente com Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, um de meus livros favoritos da autora, cuja obra permanece vigorosa na memória, cumprindo um dos objetivos principais da arte: conduzir-nos à nossa própria tradução.
Em 2007, o Museu da Língua Portuguesa de São Paulo ofereceu ao público uma exposição em homenagem a Clarice e faço uma ponte entre aquela visita e o espetáculo dos mineiros. A cenografia propunha gaveteiros gigantes, manipuláveis pelos frequentadores, em que estavam guardados textos, objetos e documentos da homenageada. Camuflagens, esconderijos de segredos que surgiam das paredes, tal qual o apartamento/vida dos personagens de Prazer. Inversamente à exposição cenográfica do teatro naturalista, onde o máximo de dados oferecido ao espectador serve a uma decodificação minuciosamente prevista, a proposta do Luna Lunera vem tratar, além de todas as implicações simbólicas, da compactação e da repartição da vida em nichos. Num está guardada a sociabilidade, em outro os segredos, em outro as emoções, sendo abertos ou fechados conforme pede a situação.
No caso do espetáculo, são paredes que limitam, enclausuram, mas que também podem servir como suporte para a expressão, permitindo-se ser apagadas e lavadas, e novamente receber escritos, projeções. Podem ser metáforas do que somos – quadros negros em que se inscrevem, por várias mãos, as impressões da nossa história. Algumas ficam, outras se sobrepõem, outras somem. Apenas o quadro-caráter permanece.




Marcelo Souza e Silva, Cláudio Dias e Isabela Paes
(Foto: Lenise Pinheiro)


E por falar em caráter, o grupo investe mais uma vez nas relações humanas. Boa parte do teatro põe em causa justamente isso, mas é possível fazê-lo dos mais diferentes modos. O Luna Lunera tem direcionado o foco para esse tema, abordando a família, a homoafetividade, e agora a amizade. Para os espectadores que transitam minimamente pelos escritos de Clarice é possível identificar uma ou outra passagem de seus textos. Para os que desconhecem, talvez sobressaiam momentos de poesia, uma composição de texto diferente do coloquialismo usual dos personagens, constituindo-se como janelas de onde pode-se ver um pouco o lá fora, água que lava e refresca, cheiro do pão de queijo que desperta o desejo e alimenta, champanhe que destrava a língua e o coração.

O grupo parece ter arrastado para este espetáculo um pouco de tudo o que fez, aprendeu e assistiu em suas viagens pelo Brasil e fora dele. Parece óbvio dizer isso, afinal são onze anos de trajetória e é esperado que as experiências tenham desdobramentos. Acontece que nesse novo trabalho é perceptível um salto em termos conceituais. Mesmo apresentando uma fábula perfeitamente compreensível e personagens com uma trajetória definida, além dos outros aspectos já citados, a predisposição ao relacionamento teatro-música-dança-arte digital amplia e intensifica a busca performativa da equipe e exige a colaboração do espectador, que agora tem mais elementos com que elaborar a sua leitura.
Para mim, é como se o grupo tivesse virado gente grande, embora mantendo o prazer do jogo. Como se tivesse virado outro, permanecendo o mesmo.




Vista geral do espetáculo
(Foto: Lenise Pinheiro)



Serviço:

Centro Cultural Banco do Brasil - SP

Rua Álvares Penteado, 112 - Centro - SP

Fones: 11 3113-3651/52


11 de janeiro a 10 de fevereiro

Sexta 20h, sábado 17h e 20h, domingo 19h

R$ 6 (inteira) R$ 3 (meia-entrada)







Adélia Nicolete
17/12/2012


domingo, 16 de dezembro de 2012

Texto de Rafael Michalichem




Maria do Carmo Freitas - Inventário dos achados - 2004
mesa com objetos - 60x100cm
(Foto: Adriana Moura)


Três! Já é o terceiro esta semana! Quem imaginaria que nesta vastidão horizontal e vertical houvesse tantas relíquias silenciosas aguardando. Sonolentas, as marcas dessa vida ancestral estão bem aqui, em minha frente, enquanto anoto a minha excitação. Talvez mais milhões de outros sob meus pés, criando vida em camadas de terra de eras diversas. Será que cada metro que escavo possui uma história diversa de vida e de morte, de tantos seres inimagináveis, de um tempo do qual não há registro? Três! Já são três deles e não me canso de procurar. Por mim, pego minhas ferramentas e volto agora para o terreno árido do sítio, passo as noites lá fora, sigo cuidadoso, silencioso e nem por isso menos excitado escavando vasos, fósseis, ossos... que mais há aqui embaixo? Que virá amanhã?


(Rafael Michalichem  é aluno do Curso de Teatro da UFU e escreveu esse trecho de diário a partir da apreciação individual e coletiva de uma obra de Maria do Carmo Freitas)


A imagem utilizada nesta postagem encontra-se no livro:
FREITAS, Maria do Carmo. Maria do Carmo Freitas: depoimento. Belo Horizonte : Com/arte, 2004. p. 4.




Texto de Leandro Sousa Alves



Maria do Carmo Freitas - Caligrafia IV - 1993
litografia em pedra - 32x43cm


Ontem fui dormir com sol queimando o meu rosto, acordei na mesma posição, no mesmo lugar, com o sol queimando o meu rosto. O verão aqui parece o inferno, já não posso mais continuar esperando a minha vida passar diante dos meus olhos. O tempo congelou: não cheguei aos 15 anos e minha pele já parece a de minha avó. Hoje será o último dia que escrevo daqui, estou a caminho do sul para tentar viver, construir...
Amanhã continuo minha saga.


(Leandro Sousa Alves é aluno do Curso de Teatro da UFU e escreveu esse trecho de diário a partir da apreciação individual e coletiva de uma obra de Maria do Carmo Freitas)


A imagem utilizada nesta postagem encontra-se no livro:
FREITAS, Maria do Carmo. Maria do Carmo Freitas: depoimento. Belo Horizonte : Com/arte, 2004. p. 4.






sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Texto de Mara Leal



Maria do Carmo Freitas - Capítulo III, Lição 7ª - 1987
nanquim, colagem - 126x92,5cm
(Foto: Adriana Moura)


Acordei bem cedo hoje, antes do sol nascer. Senti um vento frio passando pela fresta da janela... preciso mandar consertar antes que o inverno chegue. Mas não foi isso que me acordou: foi um som, era um ruído, ao longe, mas bem intenso, que me assustou. Depois que acordei percebi que era meu vizinho, aquele que tem a cara desbotada, partindo a lenha a machadadas. Com certeza já deve estar fazendo o estoque, mas precisava começar tão cedo?! Passei o dia como se houvessem pedras batendo dentro da minha cabeça. 

J. 03.11.1950.


(Mara Leal é professora do Curso de Teatro da UFU e escreveu esse trecho de diário a partir da apreciação individual e coletiva de uma obra de Maria do Carmo Freitas)


A imagem utilizada nesta postagem encontra-se no livro:
FREITAS, Maria do Carmo. Maria do Carmo Freitas: depoimento. Belo Horizonte : Com/arte, 2004.




Texto de Débora Helena




Maria do Carmo Freitas - O abacaxi - 1997
Photoetching, colagem s/ papel artesanal, folha de ouro, nanquim - 280x80cm
(Foto: Luiz Felipe Cabral)

28/11/2012

Eu, hoje, estava contemplando, de longe, o moinho de vento do parque da saudade quando aconteceu um fenômeno impressionante: todo o verde ao redor do enorme moinho foi invadido por um pequeno tornado que repentinamente se formou. O moinho desapareceu. A única imagem que prevalecia era a da terra abraçando o ar, deixando amarronzado o azul do dia.


(Débora Helena é aluna do 5º período do Curso de Teatro  - Licenciatura - na Universidade Federal de Uberlândia. A proposta de escrita foi uma página de diário, a partir da apreciação individual e coletiva de uma obra de Maria do Carmo Freitas.)


A imagem utilizada nesta postagem encontra-se no livro:
FREITAS, Maria do Carmo. Maria do Carmo Freitas: depoimento. Belo Horizonte : Com/arte, 2004. p. 4.



segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Ateliê de Dramaturgia da UFU


Convidada pela professora Vilma Campos dos Santos Leite, coordenadora do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia, ministrei uma palestra junto ao "Programa Ateliê em Artes Cênicas: produção, extensão e difusão cultural", dirigido pelo professor Fernando Aleixo. O tema da palestra foi o projeto dos Ateliês de Dramaturgia o que permitiu, além da abordagem teórica, uma vivência de escrita com o público, que ora compartilho.

Por tratar-se de uma universidade mineira, busquei entre os artistas visuais da região algum que pudesse basear o nosso trabalho prático e a escolha recaiu sobre Maria do Carmo Freitas. Natural de Belo Horizonte, com mestrado nos Estados Unidos, a professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais é gravurista. Sobre a autora e sua obra, transcrevemos um texto de Walter Sebastião:


Pode-se dizer que o gráfico é o motivo da gravura de Maria do Carmo Freitas. O mundo que ela inventa é o da escrita e reescrita permanente no e do mundo (grafar/gravar, parece lembrar o tempo todo a artista). Para tanto elege um motivo: o texto como imagem. E convoca teóricos da literatura e os escritores para discutir (na verdade constituir) uma poética que, operando com matérias papéis, caligrafias, marcas, impressos, imagens, etc. investiga também suas figurações alegóricas: espaços, memórias, rasuras, culturas, ilustrações. A ação não tem sido na direção de uma delimitação da essência do gráfico, e sim na perspectiva de construir situações em que o gráfico está imbricado de modo literal, alusivo, biográfico, histórico, etc.1


Maria do Carmo Freitas - S/título - 1998
colagem, folha de ouro - 56,5x76cm
(Foto: Adriana Moura)

A obra acima foi  escolhida para a apreciação sem que os participantes soubessem o título ou a autoria. É curioso notar o quanto os dados levantados equivalem ao pretendido pela artista em seu trabalho: 

Sertão, erosão, secura, aridez. Terra, cerâmica, coisas desgastadas pelo tempo, passagem de tempo, ancestralidades.
Deterioração, diferentes texturas, retalhos, fragmentação, camadas sobrepostas, descobertas.
Cadernos antigos, memórias, sagradas escrituras. Pergaminhos, cheiro de coisa velha.
Som de pedra sendo entalhada, de metal, de vento.

Em seguida, foi proposto que os interessados planejassem e escrevessem uma carta, levando em conta alguns elementos da apreciação. O resultado poderá ser conferido nas próximas postagens.


A artista em seu ateliê
(Foto: Adriana Moura)


(Agradeço o convite, a recepção e participação calorosa do grupo e também à paciência  em esperar pelas postagens!)

1SEBASTIÃO, Walter. Apresentação. In: FREITAS, Maria do Carmo. Maria do Carmo Freitas: depoimento. Belo Horizonte : Com/arte, 2004. p. 4.
As imagens utilizadas nesta postagem encontram-se no livro acima citado)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Ulisses Molly Bloom – dançando para adiar - Anotações de viagem







Tenho notado de uns tempos para cá, como espectadora, dois tipos de espetáculo que fogem aos padrões dramáticos. Um deles já nasce como acontecimento, dada sua contundência, sua clareza, sua potência comunicativa. É como se já estivesse pronto, em estado de latência, esperando somente que algumas conjunções se fizessem para que viesse à luz, e cumprisse seu destino já determinado. Nesse tipo de espetáculo todas as transgressões parecem cabíveis e a nossa posição de espectadores, embora alterado o esquema de séculos de frontalidade e aparente passividade, adequa-se até com certa facilidade a elas.

Já o outro tipo congrega um número bem maior de experiências, e se refere a trabalhos que se situam entre a negação de modelos consagrados e a conquista de novos paradigmas que ainda não estão bem claros. Creio que é desses espetáculos que parte do público diz “não entendi nada”, “teatro contemporâneo é tudo assim, estranho”, sem compreender a função que eles exercem na renovação constante da linguagem.
Nessas ocasiões, o espectador também é convidado a rever seu papel. Se até hoje muitas (e ótimas) produções mantêm a prática de entreter o público, oferecendo a ele um tipo de fruição que vai ao encontro de suas referências e, por isso, tende a reafirmá-las, outras há que subvertem as expectativas, que estimulam à ampliação das referências. Fazem isso jogando com o corpo do espectador, seus sentidos, trabalhando com sonoridades mais do que com o sentido das palavras etc.
Enfim, propõem um novo pacto entre cena e plateia que, mesmo não se instalando de forma contundente e clara como os espetáculos do “primeiro tipo”, cumprem a missão de testar novas possibilidades de relação e conformação.

Ulisses Molly Bloom – dançando para adiar situa-se, a meu ver, neste segundo caso. A coragem e a ousadia de trazer para a cena aspectos da famosa obra de James Joyce aponta caminhos para outras propostas do gênero. Um texto que representa as primeiras tentativas de modernização do romance não poderia ser adaptado para o teatro simplesmente com base em seu enredo. Seria preciso que também a linguagem teatral fosse confrontada. Confiaríamos ainda às palavras e ao raciocínio lógico as chaves do sentido? Limitaríamos a odisseia do personagem ao espaço cênico fechado, convencional? O público seria observador/ouvinte ou companheiro de viagem? Dublin seria uma paisagem da memória, da imaginação ou da composição com a cidade aqui-agora da narrativa? Bloom e sua amada atravessam os tempos e nos alcançam, com sua coreografia de palavras e gestos, convidando-nos a tentar compreender o nexo das coisas – incluído aí o próprio teatro.

Assisti a uma das primeiras apresentações do trabalho, em Suzano, São Paulo. Ainda havia ajustes a fazer em relação ao volume de voz, à clareza de algumas falas, ao ritmo, à definição de alguns estados, por exemplo. Talvez com o tempo o grupo possa envolver um pouco mais o público, se não fisicamente, ao menos na criação de uma atmosfera mais intensa de cumplicidade para com o personagem que vaga. Gosto de pensar que eu também, como espectadora, empreendi minha odisseia ate chegar ao teatro. Gosto de pensar o espetáculo como um ponto significativo na trajetória do meu dia. Um ponto que irei conservar na memória e poderei recapitular para melhor compreender, como faz Bloom.

Parabéns à Cia Estrela d'Alva pela reunião de tantos e tão bons profissionais em torno do projeto. Haveria muito mais a dizer. Sempre. Porém, fecho este breve comentário falando do empenho dos atores. É tocante acompanhar tão de perto o seu esforço. Vejo-os como duplos de seus personagens – Lígia e Paulo perseguindo Molly e Leopold, incansavelmente. Eles escapam, se escondem, enganam os intérpretes. Talvez Joyce faça isso conosco também: ofereça pistas que logo são retiradas ou mostram-se falsas. O fato é que os atores estão também esgotados ao fim do espetáculo-jornada, e eu vejo que a busca ainda vai continuar por muito tempo. Essa, dos artistas que querem propor novas maneiras de fazer e fruir o teatro.


Adélia Nicolete

As formas não convencionais e o público de teatro




Bom retiro 958m - Teatro da Vertigem - SP 
Direção de Antonio Araújo


Um guia de entretenimento de São Paulo em março de 2012 registra mais de 50 espetáculos teatrais na cidade.1 Se nos detivermos no perfil de cada um, veremos que a maioria transgride, mais ou menos radicalmente, a estrutura dramática consagrada. Assim, notamos a utilização de recursos tais como ausência de uma história facilmente reproduzível; simultaneidade ou fragmentação de cenas/situações; paralelismo e assincronia das falas, emissão de texto que foge à troca dialógica, ou um diálogo que parece conversa; trânsito por diferentes tempos e lugares; interlocução com a dança, a música, o cinema, as tecnologias; indefinição, indeterminação ou inexistência de personagens; participação mais concreta do espectador, motivada pela disposição da plateia, pela movimentação no espaço ou pela interação com a cena; o caráter de experiência, de evento ou comunhão, de “presentificação” mais que de representação, e tantos outros. Isso tudo desenvolvido, em grande parte, por coletivos de criação – fator determinante para a liberdade de pesquisa, pelo não atrelamento às exigências de um mercado que supõe o que vai atrair ou não público e prestígio.

O que temos notado, porém, é que mesmo com o aumento de trabalhos que fogem a uma estrutura dramática conhecida - e reforçada pelas novelas e pelo (melo)drama cinematográfico – permanece certa resistência a tais iniciativas. Reações semelhantes às que encontramos em certas exposições de artes visuais são hoje recorrentes no teatro, mesmo por parte de colegas: “isso não é arte”, “isso não quer dizer nada”, “faz-se qualquer bobagem e vira arte contemporânea”. Digamos que “teatro contemporâneo” é, para grande parte do público, a definição de um tipo de espetáculo complicado, que não somos capazes de “decifrar” e que, em geral, não diverte. Isso não deixa de ter um fundo de verdade: o “contemporâneo” oferece mesmo alguns obstáculos e cabe a nós, artistas e pesquisadores, oferecer condições para que eles sejam ultrapassados pelo público.

O filósofo italiano Giorgio Agamben sugere algumas imagens para se referir ao termo “contemporâneo” que podem ajudar nossa reflexão. Fala primeiramente da intempestividade, retomando Nietzsche, que em 1874 publicou Considerações intempestivas, cujo objetivo era “acertar as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente.”2 “Intempestivo” traz um sentido de inadequação, de algo que não é próprio ou característico do tempo em que ocorre. Portanto, para Nietzsche – e para Agamben – é verdadeiramente contemporâneo aquele que é extemporâneo, que não está perfeitamente ajustado com o tempo presente e, por isso mesmo, é capaz de percebê-lo e apreendê-lo mais do que qualquer outro.3 É como se o fato de se estar completamente mergulhado no presente e em tudo o que isso implica – permanente atualização - nos tirasse a capacidade de nos posicionarmos frente a ele. Só o conhecemos verdadeiramente quanto dele nos afastamos e sobre ele formulamos nosso pensamento.

Agamben utiliza também a imagem das trevas do presente. Sugere que se olhe o escuro do próprio tempo e não suas luzes para se identificar o contemporâneo, afinal “todos os tempos são, para quem deles experimenta a contemporaneidade, obscuros”. É contemporâneo quem é capaz de mergulhar nessas trevas e criar daí a sua obra.4 É isso: afastarmo-nos do presente a fim de buscarmos o que há de escuro nele, porque as luzes são o aparente, o óbvio e, por isso, o que é mais fácil de identificar. Portanto, mais do que preconceito ou ignorância, aqueles comentários acerca do teatro contemporâneo revelam que estamos, muitas vezes, identificando a luz, o aparente da obra. E que talvez, para uma melhor fruição, precisemos aprender a identificar o que a obra não revela. Isso se faz, a nosso ver, colocando-nos diante dela sem as lanternas que trazemos sempre conosco: nossas referências e preferências, verdades, certezas, nosso modo de ver, nossos critérios e julgamentos. Mergulhar os olhos nas trevas que a obra nos propõe, aceitando a vertigem, o desconforto, o desequilíbrio, a insegurança e, aos poucos, deixar que ela mesma nos mostre o que traz oculto.
Sabemos o quanto há de relativo nessa proposição. O sucesso maior ou menor desse mergulho vai depender da predisposição do espectador e de sua formação, da mediação com a obra, do exercício e sua frequência etc. Trata-se, porém, de uma prática necessária em relação à arte contemporânea.

A nosso ver existem três caminhos principais e coligados para que o contato com o teatro não convencional se torne uma prática menos dolorosa e mais efetiva. Um deles é a abertura do processo criativo ao espectador e a desmistificação do fazer artístico. Grande parte das vezes obra e processo são indissociáveis. Pensamos que uma formação de público só se efetiva com o compartilhamento da criação, pois quando se conhecem as bases, as inquietações e propostas que movem o trabalho, as referências práticas e teóricas do grupo, por exemplo, pode-se chegar a uma compreensão maior do resultado.5 Paralelamente, os Festivais e Mostras tem papel fundamental na oferta de uma diversidade de produções, cursos e seminários com vistas à ampliação de referências e à reflexão, tanto por parte dos artistas quanto do público em geral. E aliamos a essas duas vias a constante reflexão teórica e sua divulgação em publicações especializadas e meios acessíveis ao espectador em geral – a internet tem sido grande aliada nesse sentido.

Quem sabe, numa ação conjunta entre artistas, organizadores de eventos e pesquisadores possamos conquistar cada vez mais espectadores que fruam, destemida e apropriadamente, de um teatro não convencional.

Adélia Nicolete



1Divirta-se. O Estado de S. Paulo. 23/3 a 29/3/2012, p. 67 a 82
2AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó : Argos, 2009. p. 57
3Idem, p. 58.
4Idem, p. 63.
5Em relação a isso recomendamos a leitura de Patrice Pavis. A análise dos espetáculos. São Paulo : Perspectiva, 2003.


(Este artigo foi escrito especialmente para a Revista do FIT-BH 2012)

terça-feira, 10 de abril de 2012

Palavra de fiandeira - por Camila Shunyata


Patrícia Nogueira, Roberta Marcolin Garcia e Camila Shunyata
Imagem do espetáculo Roca de fiar


Ontem, 5 de abril, presentificamos a nossa Roca de Fiar. O olhar de você Adélia e do Sérgio para o nosso fazer teatral, o nosso encontro, tem contribuído muito no  aperfeiçoamento dos fios, das linhas, dos tecidos que estão sendo criados... 

Percebi-me e ao grupo na Roca, na cena, presentes, compartilhando as nossas memórias, compreendendo o que era dito, narrado, cantado, gesticulado, pausado... fiquei comovida... Lembrava de vocês falando que aquelas senhorinhas, embora brigassem o tempo todo por bobagens, como boas velhas "cricris", eram muito companheiras e se olhavam com afeto, com amor... Ontem olhei a todos com este amor, um sentimento que pulsava na relação com o grupo, com o público. 

Após o espetáculo conversamos com um grupo de aprendizes de teatro do Consorte. Foi tão revelador... nos demos conta de tantas coisas que estavam ocultas. Por exemplo, a Patrícia recordou do quanto intentávamos ir até Goiás conhecer o reduto das fiandeiras e como ficamos tristes, frustradas por não termos conseguido ir... e que depois, com o processo e os alimentos que vocês nos ofertaram descobrimos a riqueza da história das tecelagens da cidade de Santo André,  cidade onde nascemos, fizemos amizades, nos desenvolvemos, nos formamos, plantamos enfim nossos sonhos...

Ao dialogarmos com as pessoas sobre o nosso percurso vivido, refletimos sobre a nossa história, perguntamos sobre eles também, ainda com timidez, mas gostei tanto da espontaneidade ao perguntar coisas simples, se eles estavam se iniciando no teatro, se estavam gostando desta experiencia... O público nos retornou percepções que nos surpreenderam, sobre a nossa sintonia na cena, na fluência do movimento-canto-palavra, palpites mais específicos do fazer teatral, mas também se referenciaram ao que eu havia sentido em cena, como o nosso olhar estava vivo, desperto, cúmplice durante o espetáculo. 

Bom, estou motivadíssima com a criação do nosso espetáculo, agradeço ao universo a cada dia pelo nosso encontro, estou amando.

Só um último depoimento. Ontem, após a conversa com o público, divulgamos as oficinas que estamos ministrando no Gambalaia e que fazem parte do Fundo de Cultura. Então alguém disse "ah, sim, a tal "contrapartida" né?". Percebi a crítica realizada, e até concordo com ela, pois muitos editais hoje impõem a realização de contrapartidas como essa, e em muitos casos o grupo não está com o mínimo interesse de realizá-la, não tem desejo desta relação de troca/aprendizagem/vivencia. Gostei do modo como a Roberta respondeu a esta fala: disse que sim, era uma contrapartida, e focou no que a motivava a realizar as oficinas. Que o contato com outras pessoas estabelecia novas redes de entendimento sobre este universo das fiandeiras, sobre o trabalho que desenvolvemos em si, mas também sobre o encontro, posto que cada um seria convidado a desfiar suas memórias sobre as relações com esta arte milenar, com o tecido, com o canto, com a amizade, com os muitos temas que envolvem esta trama. 

Penso que este mesmo é o caminho para o encontro com o público, o contato vida a vida, seja por meio de diálogos, seja na intenção de um gesto, uma palavra, um objeto que se entrega, é um jeito de acolher e de estabelecer o convite para que ele retorne a este ou qualquer outro espaço de encontro com o teatro.



Camila Shunyata
Atriz do grupo Pontos de Fiandeiras

domingo, 8 de abril de 2012

Confio nos fios que fio no mundo




cartaz do espetáculo




Segue no cartaz em Santo André, em dias alternados até 29 de abril,Roca de fiar, concebido e realizado pelo grupo Pontos de Fiandeiras. Há quem chame de show, o grupo prefere espetáculo cênico-musical. Diferentes denominações possíveis para um formato que alia música e cenas interpretadas.

Os que preferem show talvez se remetam à cantora Maria Bethânia, que nunca se contentou em apenas cantar, e também recita poemas, interpreta narrativas e trechos de teatro. Talvez a diferença esteja aí: como Bethânia é cantora, o que ela apresenta é um show. Como o Pontos de Fiandeiras é um grupo de atrizes, elas definem o trabalho como cênico-musical. No caso, a denominação é um detalhe.

Ao se assumirem como atrizes que que se propõem a cantar, Camila Shunyata, Patrícia Nogueira e Roberta Marcolin Garcia colocam o foco na interpretação e, portanto, no conteúdo das cenas e canções apresentadas e não em sua afinação ou talento musical. Eles existem, mas a força está mais no aspecto cênico que em possíveis acrobacias vocais. Foi uma aposta inteligente na medida em que se casa perfeitamente com o tema do espetáculo: o trabalho de fiação.
Roca de fiar desfia em cada canção uma história ou situação ligada ao ofício da tecelagem. As cenas que servem como entremeio às músicas são textos criados por elas mesmas, baseados em vivências ou pesquisa, e a unidade é garantida por um elemento a mais: uma narrativa sobre a indústria têxtil em Santo André é apresentada em retalhos, ao longo do espetáculo.
Premiadas com verba do Fundo de Cultura do município, o grupo traduz musicalmente um dos aspectos mais fortes da história da cidade, mas que é ainda pouco conhecido.

Assisti à estreia e, por isso, havia certa tensão no ar, inclusive na plateia, composta por amigos e familiares que torciam pelo sucesso da empreitada. O nervosismo não comprometeu a performance, mas creio que ao longo das apresentações as artistas adquiram mais confiança, a ponto de se relacionarem mais tranquilamente com o público nos momentos em que isso é necessário. Creio que se o espectador é solicitado a participar, essa participação deve ser valorizada e aproveitada ao máximo. Até porque a relação alimenta o artista e a cena, fornecendo material cada dia diferente, enriquecendo o repertório e ressoando, inclusive, em futuros trabalhos.
Caso haja oportunidade, sugiro que ao menos uma vez o espetáculo aconteça no espaço de um bar, por exemplo, com os espectadores sentados às mesas, sem uma divisão tão radical entre palco e plateia, que inibe as manifestações. Tenho a impressão de que a atmosfera seria mais descontraída, favorecendo a relação e, consequentemente, o trabalho.


Para a realização do trabalho, as atrizes contam com uma banda que, tão afinada com o projeto, bem poderia aparecer um pouco mais. Justamente por não serem da área musical, as compositoras preocuparam-se mais com as letras, de modo que cada intervenção musical tem a medida exata da canção. Meus ouvidos sugerem que haja, em alguns casos, uma introdução ou finalização instrumental maior, ou momentos solo no meio de cada música. Seria agradável que a cena se abrisse para que os músicos tivessem destaque. Seria como um bordado, uma fita, um laço que se destacam no todo da peça.
Esses momentos exclusivos da banda, além de serem agradáveis, seriam um intervalo de repouso das atrizes, ou de preparo para a próxima cena, assim como uma pausa para que o público pudesse refletir sobre as letras ou o texto, fruindo aos poucos tudo o que é oferecido.

Há um cuidado especial com o figurino, os cabelos e objetos de cena, procurando uma interlocução com o tema geral. E percebe-se também uma atenção especial na apresentação das músicas na medida em que as vozes são trançadas ou se desfiam mais soltas. No caso da interpretação das cenas, há espaço também para o humor, a emoção, o mistério - o que ajuda a dar colorido ao conjunto.


Meu nome liga-se ao trabalho por dois motivos. O primeiro é a concepção temática, a composição de uma das letras e a colaboração na letra que permeia o espetaculo. O segundo é o outro projeto do grupo: uma montagem teatral que também vai abordar o tema da fiação. Neste caso, a situação vai se inverter. Em vez de show pincelado de cenas, será teatro com algumas intervenções musicais.
A ideia é que o grupo tenha dois projetos a oferecer e que, embora independentes, um complemente o outro.

Espero que Roca de Fiar tenha uma longa estrada e, quem sabe, inspire outros grupos a se arriscarem também nesse formato. Com o tempo, tudo se arremata: as atrizes ficam mais à vontade no papel de cantoras e isso torna o show cada vez melhor. E, por sua vez, as cantoras trazem mais descontração e confiança às atrizes em sua relação com o público, o que beneficia o espetáculo. É confiar!


Adélia Nicolete
abril de 2012


Esta postagem não se pretende uma crítica ou juízo de valor. Trata-se, acima de tudo, de um exercício de leitura da cena, com finalidade acadêmica.







terça-feira, 3 de abril de 2012

Ítaca é cinza



...E o que sentia era uma enorme saudade do futuro... 
perdoe-me se eu não soube me despedir...
Espetáculo do Teatro da Transpiração em cartaz no Parque Escola de santo André - SP


Ítaca é cinza


Inauguro a retomada do blog com uma postagem que fala diretamente à nossa pesquisa, mas também ao nosso sentimento. Acho que não haveria motivação maior que comentar um espetáculo cuja dramaturgia foi feita por uma participante dos ateliês. Trata-se de Bárbara do Amaral e sua atuação – também como atriz – em ...E o que sentia era uma enorme saudade do futuro... perdoe-me se eu não soube me despedir...a mais recente realização do Teatro da Transpiração, de Santo André.

Acompanhei um ensaio aberto, ainda em 2011, e a pesquisa já estava delineada. A partir de algumas questões iniciais sobre a trajetória da vida, os atores fizeram depoimentos por meio de cartas, que foram aos poucos sendo transformados em cenas. Segundo o programa do espetáculo, o trabalho de dramaturgia consistiu em operar “a partir” desse material. Ou seja, as experiências foram “misturadas, cortadas, modificadas, ampliadas, costuradas, expurgadas, readmitidas, parodiadas, coladas etc” tendo como norte o mundo contemporâneo.

Trata-se de um projeto ousado e arriscado. O grupo vinha de quase dez anos de criação com base em peças já existentes e em obras literárias. Por mais que esse material fosse também modificado, ampliado, parodiado, havia um terreno sólido e relativamente conhecido – dos artistas e do público – por onde estender ou erguer criações outras. Por outro lado, esses quase dez anos de investigação talvez acabassem por pedir um salto, uma passagem, principalmente em relação à dramaturgia. De certa forma, ...E o que sentia... vem responder a essa solicitação do próprio processo.

Um tema como esse – a vida e seus ciclos - repleto de subjetividade, se escrito por um único dramaturgo, muito provavelmente teria uma configuração diferente do que encontramos nesse espetáculo. Aqui, a fragmentação é a principal característica a denunciar os diversos corpos que compuseram cena e texto. Além dela, uma heterogeneidade de abordagens, que foge a uma identificação imediata de unidade e de sentido, por exemplo. O processo colaborativo, como chamamos o procedimento de criação utilizado, ao compor com elementos por vezes tão diferentes, resulta no que podemos chamar de estrelamento, ou seja, a partir de um ponto comum, detonam-se respostas diversas. O modo como cada grupo vai tratar cenicamente essas respostas vai ser a marca do trabalho. Pode-se buscar uma unidade mais firme, seja por meio de personagens que se mantém ao longo do espetáculo, seja por meio de um espaço definido que abrigue as cenas, de um recurso de texto – a poesia, por exemplo - que unifique todas as propostas. Esse enquadramento é um trabalho da dramaturgia.

No caso de ...E o que sentia...houve uma busca visual de unidade, dada pelo figurino-base na cor cinza, sobre o qual se revezam adereços de outras cores. Ótima ideia para se fugir do tão repetido preto. O cinza comum posiciona todos os personagens numa mesma trajetória – a da vida, a da linha do tempo, da linha da estrada, da viagem, seja ela real ou metafórica. E sobre ele tudo parece cair bem.

Outra unidade talvez tenha sido a do drama de cada um. Desde o drama vivido no primeiro dia de aula, passando pelas perdas, os desencontros, a impossibilidade de comunicação. Como cada um passou por suas crises e lidou com elas. Nesse sentido as cenas corais funcionam como dramas vividos coletivamente e colocam com mais força ao espectador que ele também faz parte daquela situação, senão naquele momento, ao menos em algo passado ou futuro.

A condução de cenas feita pelo robô-ator e pelo mordomo é outro recurso de unidade, a nos lembrar dos tempos que correm, cada vez mais rápido. Podem remeter também à passagem final do filme Blade Runner, quando o androide se lamenta por não ser um homem. No caso do espetáculo, ele ganha vida e, como os humanos, pega sua mala e entra na corrida.

Creio que a coragem do grupo em saltar sem a rede literária de referência tem, por vezes, o risco de um mergulho solitário, em que os acrobatas se divertem mais que a plateia. As cenas em que se atribui à música uma grande carga de sentido são um exemplo. Elas resultam longas e um pouco redundantes, por mais que haja carga dramática – como na cena do casal que rompe -, ou que o volume e a “pegada” do som sejam impactantes – como na cena final, das malas. Outro exemplo é a cena do game, que se estende além do necessário, até porque não é o público quem aciona o jogo.

Mas isso é detalhe diante da pesquisa e da proposta realizada. Bárbara criou belos textos de autoria própria e conseguiu elaborar uma dramaturgia que apresenta em grande escala a trajetória da vida de cada um e de todos. Não é a sua primeira experiência com dramaturgia no Teatro da Transpiração, mas o é como autora única, responsável por um projeto inédito. Não é fácil lidar com materiais subjetivos e íntimos dos colegas, com expectativas de dentro e de fora do grupo, com a presença de veteranos na condução das cenas - mesmo numa equipe madura e acolhedora. A nossa nova dramaturga saiu-se muito bem dessa primeira empreitada.

Estou certa de que o Teatro da Transpiração – e também o da Conspiração – saem diferentes desse processo. É como um vestibular, um casamento, um filho, uma despedida que nos jogam pra outro patamar da existência. No começo pode assustar. Olhar para trás pode provocar saudade, mas não há como voltar. Então é melhor olhar pra frente, pois a vida pede isso e é também o que buscamos - o aprimoramento. Seguir. Enfrentando feras, tempestades, sereias, mas com a certeza de chegar, seja onde for, e fazer de lá a sua Ítaca.





Adélia Nicolete 03 de abril de 2012


Esta postagem não se pretende uma crítica ou juízo de valor. Trata-se, acima de tudo, de um exercício de leitura da cena, com finalidade acadêmica.