Há espetáculos a que assistimos, mas não encontramos tempo de escrever a respeito. Há também que não despertam qualquer vontade de escrever. E há outros a que à delícia do encontro junta-se um pedaço de madrugada livre para anotações e aí o texto acontece. Foi assim com Prazer.
Abaixo, alguns escritos irresponsáveis.
Cena de Prazer
(Foto: Lenise Pinheiro)
Em
duas temporadas no CCBB de São Paulo, o grupo mineiro Luna Lunera
traz ao cartaz seu mais recente espetáculo, Prazer. Fruto de
uma criação em processo a partir da literatura, desta vez toma a
obra de Clarice Lispector como referência – em Aqueles dois,
criação anterior, um conto de Caio Fernando Abreu fora o detonador
da cena.
É
basicamente um recorte na história de quatro amigos que a vida
tratou de separar fisicamente ou não e que, certo dia,
reencontram-se fora de seu território, aproveitando o confinamento a
que estão submetidos para retomar questões, revelarem segredos e
reafirmarem laços. Mais não digo, para não impor o meu ponto de
vista sobre o trabalho, atrapalhando futuras apreciações.
São
três atores e uma atriz, num espaço à italiana, sem a quebra da
quarta parede. Há uma fábula perfeitamente compreensível,
personagens definidos, começo-meio-fim, conflitos, saltos
qualitativos e quantitativos, linha de ação direta e, para
completar, um final coerente com todas as ações anteriores. Uma
dramaturgia que tece aos poucos e d e forma inteligente o enredamento
dos fios de cada um. Honram a fonte ao abordar angústias
existenciais, desconfortos de alma e problemas de relacionamento
entre o feminino e o masculino. Em suma, tem absolutamente todos os
ingredientes de um drama convencional, porém o grupo transforma todo esse
material em plataforma de lançamento para uma dramaturgia e uma
encenação alcançarem esferas muito além da forma dramática. Isso é
conseguido por meio de recursos próprios do teatro contemporâneo:
fragmentação, variação-repetição, hibridismo de linguagens,
novos tratamentos para as noções de tempo e espaço são apenas
alguns deles.
A
certa altura do espetáculo um dos personagens afirma que onde quer
que a gente vá, leva a si mesmo junto. Não há como fugir, nem como
se perder, estamos condenados à nossa companhia. Dentre as inúmeras
entradas possíveis para uma análise do espetáculo, escolhi essa.
Parece-me apropriada a um espectador contemporâneo, convidado a ser
um co-criador da cena: não tendo feito parte do processo, ele também
só tem a si mesmo, às suas referências, ao seu repertório, enfim,
para estabelecer relação com a obra e, a partir disso, construí-la
ao mesmo tempo em que a assiste.
Cláudio Dias e Isabela Paes
(Foto: Lenise Pinheiro)
Começo
a escavar o alicerce dessa construção de sentido pelos meus 15
anos, idade em que assisti ao primeiro espetáculo de teatro adulto:
a eficiente comédia O
dia em que raptaram o papa,
do carioca João Bitencourt.
Dentre as coisas de que me lembro – e que ligaram-se de imediato ao
novo trabalho do Luna Lunera – estão uma torneira que vertia água
e personagens comendo de verdade em cena. Mas que abismo separa essas
duas ocorrências!
Naquele, o naturalismo
assumido como verdade: é preciso convencer o público de que isto é
uma cozinha, e logo ali está a sala com seu sofá e seus abajures, a
sua janela que abre e que revela um jardim, e assim por diante.
Neste,
o naturalismo teatral sofre tamanha releitura, que chega a
tangenciar o naturalismo na própria vida com seus simulacros de
amor, alegria, amizade, prazer. Muitas falas parecem brotar na hora,
num improviso dos atores, tamanha a coloquialidade e a prontidão com
que são enunciadas. Fala-se com naturalidade de sentimentos que não
estão claros. Por vezes descobrem o que sentem na medida em que
enunciam o espanto. Descobrem modos de driblar a fatalidade,
arriscam-se a um naturalismo que possa salvá-los da complexidade e
do desconforto que é existir. Tais falas contrastam, porém, com as
citações de Clarice e é justamente quando parecem não falam por
si próprios que os personagens mais se revelam e à sua verdade.
Um
detalhe processual: na comédia de João Bitencourt,
a comida foi trazida pronta para a cena. Aqui, o que se comeu foi
misturado e amassado na hora, levado ao forno e assado no tempo que
levam algumas descobertas dos personagens. Se a peça pronta levara
ao espetáculo, hoje ele se estabelece no misturar e amassar diários
dos ensaios, e sua assadura e consumo fazem-se diante do público e,
de certo modo, com ele. A água da torneira dos anos 1980 era apenas
uma demonstração dos recursos da produção, pois totalmente
dispensável à fruição da obra. Os canos de 2012 vertem água que
lava, purifica e, quem sabe, faz renascer novos eus dentro dos velhos
conhecidos.
Lembro também, na montagem
de mais de 30 anos atrás – para aquele tipo de proposta falava-se
em “montagem” da “peça” (texto), hoje falamos de criação
em processo, já que a “peça”, muitas vezes, nunca chega a se
constituir plenamente – lembro da marcação cênica com suas
entradas e saídas estratégicas que geravam o riso. Havia duas ou
três portas, levando à “rua” ou às dependências internas da
“casa”, facilitando perseguições, esconderijos e fugas dos
personagens. Lembro-me também da perfeita adequação entre texto e
corpo, ou seja, os intérpretes esmeravam-se em fazer corresponder
suas falas aos gestos e expressões. No espetáculo desta noite os
atores ora correm das palavras, ora fogem delas pelo lado oposto,
atiram-nas aos demais; gritam ou segredam em passos de dança, em
perseguições, num desconforto entre a alma que quer e precisa
expressar-se e o corpo que ora a contém, ora não consegue evitar
que ela se derrame. Tudo num espaço sem uma porta sequer, e que,
no entanto, permite que os amigos estejam em casa, num avião ou
mesmo à beira mar.
À claridade e ao espaço
cênico gigantesco da comédia de minha adolescência – quando eu
ainda não conhecia Clarice Lispector, nem tinha a necessidade de –
vem contrapor-se o claustro permanentemente na penumbra do espetáculo desta noite, metáfora do espaço interno de cada um, os escuros de
dentro, em que personagens se amam e se debatem, sendo um só, embora
sejam tantos.
Odilon Esteves
(Foto: Lenise Pinheiro)
Continuando as escavações, percebo que foi naquela mesma época que tomei contato com um autor que marcou por um bom tempo a minha paixão pela leitura: Fernando Sabino. De suas crônicas publicadas na coleção “Para gostar de ler”, da editora Ática (a mesma da coleção “Vaga-lume”, citada no espetáculo) saltei para seu livro mais famoso: O encontro marcado. Romance de geração e de formação, publicado em 1956, com fortes traços autobiográficos, trata da amizade entre quatro moços e uma moça e dos caminhos percorridos por eles até a idade adulta, quando se reencontram na data estabelecida por um pacto na juventude. Dúvidas existenciais, descoberta da sexualidade, incertezas quanto ao caminho tomado, traições, medos, busca da felicidade e toda uma série de componentes são orquestrados por Sabino que, paralelamente, vai traçando a evolução da cidade de Belo Horizonte.
Foi inevitável não lembrar
dele ao ver aqueles três mineiros e uma mineira em cena, num
encontro há muito planejado, mas nunca realizado. Um encontro não
mais em Belo Horizonte, mas fora do Brasil, território do
desconforto. Nenhum deles está confortável em sua própria pele e o
lugar que escolheram para viver/estar tampouco os localizam. No
entanto, trata-se de um encontro marcado consigo mesmos ou com o que
cada um fez de si e, nesse processo, iluminam-se uns aos outros,
espelham-se também em busca do próprio ser naquele que não sou eu.
Li
praticamente todos os livros de Fernando Sabino, mas hoje avalio sua
literatura mais ou menos como avalio O
dia em que raptaram o papa: uma
satisfação restrita à adolescência.
Tempos
depois cheguei a Clarice Lispector, justamente com Uma
aprendizagem ou O livro dos prazeres, um
de meus livros favoritos da autora, cuja obra permanece vigorosa na
memória, cumprindo um dos objetivos principais da arte: conduzir-nos
à nossa própria tradução.
Em
2007, o Museu da Língua Portuguesa de São Paulo ofereceu ao público
uma exposição em homenagem a Clarice e faço uma ponte entre aquela
visita e o espetáculo dos mineiros. A cenografia propunha gaveteiros
gigantes, manipuláveis pelos frequentadores, em que estavam
guardados textos, objetos e documentos da homenageada. Camuflagens,
esconderijos de segredos que surgiam das paredes, tal qual o
apartamento/vida dos personagens de Prazer.
Inversamente
à exposição cenográfica do teatro naturalista, onde o máximo de
dados oferecido ao espectador serve a uma decodificação
minuciosamente prevista, a proposta do Luna Lunera vem tratar, além
de todas as implicações simbólicas, da compactação e da
repartição da vida em nichos. Num está guardada a sociabilidade,
em outro os segredos, em outro as emoções, sendo abertos ou
fechados conforme pede a situação.
No
caso do espetáculo, são paredes que limitam, enclausuram, mas que
também podem servir como suporte para a expressão, permitindo-se
ser apagadas e lavadas, e novamente receber escritos, projeções.
Podem ser metáforas do que somos – quadros negros em que se
inscrevem, por várias mãos, as impressões da nossa história.
Algumas ficam, outras se sobrepõem, outras somem. Apenas o
quadro-caráter permanece.
Marcelo Souza e Silva, Cláudio Dias e Isabela Paes
(Foto: Lenise Pinheiro)
E por falar em caráter, o grupo investe mais uma vez nas relações humanas. Boa parte do teatro põe em causa justamente isso, mas é possível fazê-lo dos mais diferentes modos. O Luna Lunera tem direcionado o foco para esse tema, abordando a família, a homoafetividade, e agora a amizade. Para os espectadores que transitam minimamente pelos escritos de Clarice é possível identificar uma ou outra passagem de seus textos. Para os que desconhecem, talvez sobressaiam momentos de poesia, uma composição de texto diferente do coloquialismo usual dos personagens, constituindo-se como janelas de onde pode-se ver um pouco o lá fora, água que lava e refresca, cheiro do pão de queijo que desperta o desejo e alimenta, champanhe que destrava a língua e o coração.
O
grupo parece ter arrastado para este espetáculo um pouco de tudo o
que fez, aprendeu e assistiu em suas viagens pelo Brasil e fora dele.
Parece óbvio dizer isso, afinal são onze anos de trajetória e é
esperado que as experiências tenham desdobramentos. Acontece que
nesse novo trabalho é perceptível um salto em termos conceituais.
Mesmo apresentando uma fábula perfeitamente compreensível e
personagens com uma trajetória definida, além dos outros aspectos
já citados, a predisposição ao relacionamento
teatro-música-dança-arte digital amplia e intensifica a busca
performativa da equipe e exige a colaboração do espectador, que
agora tem mais elementos com que elaborar a sua leitura.
Para
mim, é como se o grupo tivesse virado gente grande, embora mantendo
o prazer do jogo. Como se tivesse virado outro, permanecendo o mesmo.
Vista geral do espetáculo
(Foto: Lenise Pinheiro)
Serviço:
Centro Cultural Banco do Brasil - SP
Rua Álvares Penteado, 112 - Centro - SP
Fones: 11 3113-3651/52
11 de janeiro a 10 de fevereiro
Sexta 20h, sábado 17h e 20h, domingo 19h
R$ 6 (inteira) R$ 3 (meia-entrada)
Adélia Nicolete
17/12/2012