sexta-feira, 12 de abril de 2013

Um corpo que vaga - o personagem contemporâneo em SUPER NADA, novo filme de Rubens Rewald






Na porção final de Esperando Godot, passados o tempo e as estações na expectativa de que algo verdadeiramente grande e significativo acontecesse, o personagem Vladimir verbaliza, ainda que sem consciência disso, a sua condição e também a do amigo Estragon:

Eu estava dormindo enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando eu estiver pensando que acordei, que direi do dia de hoje? Que junto com Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite, eu esperei por Godot? Que Pozzo passou com seu escravo e falou conosco? Sem dúvida. Mas o que haverá de verdade em tudo isso? (Vladimir contempla Estragon cochilando.) Ele não saberá de nada. Ele falará dos golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. (Pausa.) Com um pé na cova e um nascimento difícil. Do fundo do buraco, indolentemente, o Coveiro aplica seu fórceps. Temos tempo de envelhecer. O ar está cheio de nossos gritos. (Escuta.) Mas o hábito é uma grande surdina. (Olha Estragon.) Também para mim alguém está olhando, também sobre mim alguém estará dizendo: Ele está dormindo, ele não sabe nada, deixe-o dormir. (Pausa.) Não posso mais continuar. (Pausa) O que foi que eu disse?”

Samuel Beckett criou os personagens sem nome completo, sem família, sem antepassados ilustres ou posições definidas na sociedade. São dois vagabundos. Dois palhaços, ou melhor, dois clowns. Vladimir é o chamado clown branco, aquele que, na dupla, representa o raciocínio, o intelecto. Já Estragon, mais ingênuo, emocional, eterno perdedor, sempre à mercê das circunstâncias, costuma ser definido como clown augusto.

* * *
Augusto, o protagonista do filme Super Nada, com roteiro e direção de Rubens Rewald, assim como o clown composto por Beckett, vive à mercê dos acontecimentos enquanto espera o grande teste, a grande chance de mostrar o seu talento de ator cômico. Enquanto isso não acontece, sua vida é o próprio ensaio. Guto prepara-se o tempo todo para o dia decisivo, que ele não sabe bem qual será, por vezes simulando o grande encontro.

Utilizando um recurso que lembra Beckett, Rewald cria um enredo que coloca em xeque realidade e fantasia – mereceria reflexão à parte o desvelamento das famosas “pegadinhas” que fazem tanto sucesso na televisão. Apesar de inserido em um contexto diferente daquele de Vladimir e Estragon, e apresentar uma outra estrutura interna, Guto não chega a formular um raciocínio como o do personagem beckettiano, citado logo acima. No entanto, vemos em sua expressão a perplexidade diante de certas experiências, o que acentua a possibilidade de muitas delas terem sido apenas imaginadas por ele. Quem cuida desse tipo de reflexão é o espectador, a todo momento convidado a mergulhar em alguma situação que, em pouco tempo, mostra-se “nada”, apenas um ensaio, apenas uma simulação, um intervalo de fantasia.

Embora mais linear que Corpo, filme anterior de Rewald em parceria com Rossana Foglia, Super Nada subverte igualmente os limites entre o que vai dentro e fora da cabeça do personagem, do seu desejo e das suas neuroses. Os protagonistas se assemelham em alguns aspectos, mas creio que nesse segundo trabalho, o esfacelamento do personagem tenha sido o passo mais ousado do diretor. Guto pode ser definido como uma figura, algo mais próximo de uma pesquisa que se tem intensificado no teatro contemporâneo, não sem razão, tributária do teatro de Beckett.

Esperando Godot abre caminho para a desestruturação do personagem como indivíduo constituído histórica e psicologicamente, relacionando-se com outros seres igualmente definidos, com quem estabelecerá relações e diálogo interpessoal. Longe de cumprir uma trajetória apreensível e compreensível, com pontos nodais e conflitos que levem a um desfecho coerente, o personagem contemporâneo carrega um espelho que reflete o homem e a sociedade atuais. É, não raro, um simples emissor de discursos, alguém incapaz de formular uma análise sobre o mundo, também ele múltiplo e inapreensível. O avanço dos estudos psicológicos contribuiu para que pudéssemos ver o homem e sua trajetória menos como fruto de uma vontade determinada que de seus impulsos, por exemplo, e uma sociedade que propõe determinadas condições e prega determinados valores condiciona a existência desses seres que vagam, sem uma significativa história pregressa, rumo a um futuro igualmente insignificante.

Hamlet já acenava com essa desestruturação do homem moderno. Guto, muitas vezes, é apenas um corpo que vaga pela metrópole e seu funcionamento parece emperrado na equação “ser ou não ser”. Paradoxalmente, ao contrário do augusto, que “não pensa”, o protagonista parece imobilizado pelo excesso de pensamento.

Nas aulas de expressão corporal ele vaga, no chuveiro com a namorada ele não está totalmente presente. Nas festas está à deriva, nos testes e nos programas que faz apenas cumpre a tarefa e recebe o cachê, dividido-o com a mãe. O ambiente em que vive representa um pouco o que lhe vai por dentro: a precariedade. Falta água na torneira, a descarga não funciona, o sofá puído não tem um dos pés. Não há nada para se beber na geladeira e na parede da sala seu ídolo é um palhaço decadente.

O seu círculo social não colabora muito. Os amigos estão em permanente ensaio, preparando-se em aulas sensoriais, com gestos que apenas simulam integração e descontração. As festas reproduzem um outro patamar desse grande nada. A mãe, talvez principal referência de Guto, também é dada ao lirismo e à teatralidade. A namorada, atriz à procura de seu grande papel, vaga à mercê de seus desejos e frustrações. Mas Guto tem uma filha e, quem sabe, ela possa fazer o fórceps, trazendo à luz o personagem que vive no corpo que vaga. Guto só não naufraga porque precisa sustentar a a criança – outra imagem do clown augusto.

Um protagonista como esse poderia vagar por qualquer geografia. Bastam a Vladimir e Estragon uma estrada e uma árvore. Guto percorre a cidade de São Paulo. É ela o seu abrigo, nela estão as ruas e o parque em que trabalha, o teatro em que apresenta seus esquetes, a escadaria em que coreografa suas amizades, o viaduto sob o qual empreende a caminhada solitária. Há uma pequena tomada de um conjunto habitacional que me levou direto para alguns filmes ambientados em Roma. Super nada me acendeu a esperança de que Rewald possa um dia realizar um trabalho mais profundamente ligado à nossa cidade.

A referência a Beckett inclui ainda o que há de teatral no filme. À parte a presença de atores do teatro paulista, dos cartazes na sala de Guto, há uma forte teatralização nas situações. Certas cenas com a mãe, por exemplo, ou com a filha, deixam dúvidas se os personagens estão agindo ou fingindo. A certa altura tudo pode ser uma grande simulação, ou seja, pode não ser realmente nada.

Tal reflexão encontra reforço quando da gravação do programa de humor, no final do filme. Tendo passado no teste para uma participação como “escada” em seu programa preferido, Guto encontra-se apavorado, não só pela tensão como ator, mas pelas mil e uma situações por que passou desde o teste até aquele momento – situações reais ou imaginárias, não se sabe ao certo. Quando o personagem Zeca, o cômico que apresenta o programa, chega perto do protagonista e o tranquiliza com o conhecimento de causa que só alguém decaído pode ter, saltamos de Esperando Godot para Macbeth, quando seu destino está selado:

(...) A vida não é mais que uma sombra passageira
Um pobre ator que gesticula e se excita sobre um palco
E depois não é mais ouvido.
A vida é uma história contada por um imbecil,
Cheia de som e de fúria,
Mas que nada significa.”

* * *

Uma análise crítica pressupõe recorte. Beckett e Shakespeare são apenas dois pontos de acesso a Super Nada, que tem como principal atributo o tanto de reflexões que provoca. Creio que há, em alguns momentos, um lapso entre o roteiro e a execução. Algo que foi planejado e imaginado, algo cabível e coerente, mas que não se concretiza plenamente na tela. Isso ocorre, em geral, com a namorada de Guto. Sua trajetória é abordada de forma contraditória. Ao mesmo tempo em que o roteiro dá pistas sobre o comportamento futuro da personagem, num modo dramático de funcionamento (e isso ocorre praticamente com toda a trama), sua pretensão de bordejar tanto “realidade” quanto fantasia levou-me a considerar a moça estranha, indefinida, mais do que qualquer outra coisa. Quando ela faz uma revelação a Guto, no final do filme, a informação está descolada de seus antecedentes por uma simples questão de escolha formal. É como se o diretor quisesse romper com um determinado tipo de narrativa, mas o roteirista ainda estivesse preso a certos paradigmas.

Super Nada não é um filme fácil. O espectador precisa trabalhar mais do que o de costume. Trabalhar, inclusive, nos dias seguintes ao filme – o que já ocorria em relação a Corpo. Começando pelas pichações utilizadas nos créditos (fossem grafite, anunciariam um outro tipo de filme e de personagem), o público vaga por inúmeras referências, entrando e saindo do jogo proposto por Rewald. Trata-se, porém, de um jogo em que quanto mais peças o espectador levar consigo ao cinema, mais chances terá de não sair derrotado. E simplesmente “não gostar” de um filme como esse é um tipo de derrota.


Adélia Nicolete


(Mais informações sobre o filme e a exibição podem ser encontradas no site  http://www.supernada.com.br/  )