quarta-feira, 14 de agosto de 2013

"Sleep no more" - hospede-se no Hotel McKittrick e tenha seu sono roubado



(Foto: internet)


Entre final de março e início de abril de 2013, passei duas semanas em Nova Iorque para estudos complementares do doutorado em Pedagogia do Teatro. O tema da tese foi a integração entre linguagens artísticas como fundamento para a criação dramatúrgica, tendo como foco a arte contemporânea.

Nas postagens anteriores comentei sobre museus, exposições, grupos teatrais e performances. Nesta, que será a última da série, tratarei de um espetáculo em cartaz no circuito off Broadway e que reúne algumas das principais características do teatro contemporâneo: Sleep no more, uma releitura do Macbeth, de Shakespeare.


Ao voltar à companhia de sua esposa, com as mãos manchadas de sangue após o assassinato do rei Duncan, Macbeth, ainda impressionado com o que acabara de fazer, afirma ter ouvido uma voz que gritava “Nunca mais dormirás! Macbeth assassinou o sono!...” [“Sleep no more! Macbeth does murder sleep...”]. Dali em diante, seus dias serão vividos como num pesadelo, até a luta final, que o levará ao sono definitivo. Foi justamente esse clima de pesadelo, conspiração e morte que o grupo inglês PunchDrunk pretendeu recriar em seu espetáculo Sleep no more. A ação foi transposta para os anos 1920/30 e, em vez de um palácio, é um hotel que abriga a tragédia.

Na verdade o termo correto não seria espetáculo - começa daí o não-convencionalismo da proposta. O espectador-hóspede que lota as sessões diárias, e que frequentemente retorna, faz o check in para uma experiência não só artística, mas também lúdica e até psicológica. É preciso deixar para trás bolsas e casacos, assim como um modo de ver e viver o teatro.

                                            (Foto: internet)

Um conjunto de armazéns em Chelsea foi reformado para simular um hotel, o McKittrick, com cinco andares e cerca de cem ambientes. Uma lenda foi criada em torno dele, o que reforça a atmosfera de suspense e de filme noir sugerida pelo grupo.

Depois de registrados no lobby e de ganhar o seu cartão de acesso (uma carta de baralho), os hóspedes são encaminhados ao Manderlay, o bar do hotel, ainda no térreo. Gelo seco, luz baixa, música retrô e muito suspense sugerem o que virá a seguir: uma aventura particular e consciente num pesadelo/jogo coletivo.

(Foto: internet)

A tensão começa quando somos proibidos de falar e se intensifica ao sabermos que é mais seguro fazermos o percurso sozinhos. A cada um está reservada uma máscara branca, que deverá ser usada durante toda nossa permanência no local, do contrário, poderemos ser confundidos com o staff do hotel ou, pior, com algum dos personagens da tragédia. A aceitação das regras e desse jogo de faz de conta é fundamental para que o espetáculo se transforme em experiência, pois é a partir disso que cada um poderá criar a sua própria narrativa, independente daquela recriada por Shakespeare a partir de relatos históricos, ou da releitura proposta pelo grupo.

Do restaurante, já devidamente mascarados, somos levados por um corredor escuro até o elevador. Um certo número de hóspedes é deixado de andar em andar. Livres, para fazer o percurso que quisermos, podemos seguir o primeiro personagem que passar pela nossa frente, apreciar uma performance de dança, subir e descer escadas, explorar as dezenas de espaços detalhadamente cenografados – sempre sob pouca luz e com uma trilha musical bastante sugestiva.


(Foto: internet)

Assim, conforme o trajeto dos atores ou nosso desejo de exploração, nos vemos na enfermaria de um hospital, numa sala de jantar, num escritório, numa botica, no ateliê de um taxidermista, num salão de baile, numa alcova, numa ampla sala de estar, num banheiro, num jardim abandonado, num cemitério e tantos outros espaços disponíveis à nossa curiosidade. É possível abrir armários e gavetas, sentar-se ou deitar-se, apreciar objetos e obras de arte, ler um livro, um prontuário médico e até abrir a correspondência de Lady Macbeth, enquanto uma horda de mascarados passa correndo no encalço de algum personagem.

Ficamos com a impressão de ter entrado em um labirinto ou na toca do coelho de Alice. Tudo pode acontecer no instante em que abrirmos uma porta ou que atingirmos o topo da escada. Um braço pode aparecer do nada, impedindo determinado trajeto e, ao tentarmos escapar de um ambiente que nos oprime, nos vemos, outra vez, na sala escura de onde saímos há pouco. A imaginação tem papel fundamental na nossa falta de ar e na ansiedade. Nossas referências, principalmente cinematográficas e literárias, tratam de dar o devido tom de terror, paixão e suspense que complementam o trabalho da encenação.

                                              (Foto: internet)

A ausência de texto verbal também por parte do atores abre inúmeras possibilidades de leitura. São todos ótimos dançarinos e performers, preparados, inclusive, para o caso de algum espectador (em geral os que já assistiram algumas vezes) que tente contracenar ou interferir na ação. O retorno ao hotel é estimulado pela produção, que envia e-mails constantes convidando os antigos hóspedes, inclusive para sessões especiais.


(Foto: internet)


A estrutura do projeto é impressionante e conta com cerca de oitenta colaboradores, entre artistas, cenotécnicos, seguranças e pessoal administrativo. O esquema de acesso é inusitado: a partir das 19h é possível hospedar-se a cada quinze minutos, desde que tenha sido feita reserva, ou seja, a performance começa e novo público é acrescentado periodicamente. Há também um jantar opcional, servido durante a sessão a quem tenha feito a solicitação antecipadamente.

É permitido sair logo que se complete a primeira hora da performance, mas a maioria prefere permanecer até as 22h, quando a sessão é encerrada e todos são convidados a descer para o bar do hotel, onde haverá novas performances e shows musicais.


(Foto: internet)


Essa mistura de teatro, dança, show e role-playing game solicita uma postura inusitada do espectador, que precisa estar disposto a colaborar criativamente para a efetivação da obra. Sabemos, pelos relatos, que há quem deteste Sleep no more e se diga arrependido por não ter aproveitado a noite com o Rei Leão. São os mesmos que afirmam não ter entendido nada, não ter conseguido ver nada de interessante, exatamente como acontece num sem número de espetáculos não-convencionais. O problema não está nem nos espetáculos, nem nos espectadores. É só uma questão de preferência.

Se você gosta do teatro tradicional, com uma boa trama, definida e compreensível, se gosta de sentar e ser entretido, a Broadway tem ótimas opções. E se você encara numa boa o teatro processional, se não faz questão de uma história imediatamente apreensível, se está disposto a “trabalhar” criativamente; se busca emoções fortes e colocar-se em risco, ainda que imaginário, ou se está buscando viver uma experiência diferente, é ao Hotel McKittrick , em Chelsea, que você deve ir. Macbeth espera por você para uma noite insone.


(Foto: internet)


Informações sobre todos os horários, preços, reservas, etc:


Adélia Nicolete