(Foto: internet)
Entre final de março e início de abril
de 2013, passei duas semanas em Nova Iorque para estudos
complementares do doutorado em Pedagogia do Teatro. O tema da tese
foi a integração entre linguagens artísticas como fundamento para
a criação dramatúrgica, tendo como foco a arte contemporânea.
Nas postagens anteriores comentei sobre
museus, exposições, grupos teatrais e performances. Nesta, que será
a última da série, tratarei de um espetáculo em cartaz no circuito
off Broadway e que reúne algumas das principais características do
teatro contemporâneo: Sleep no more, uma releitura do Macbeth, de Shakespeare.
Ao
voltar à companhia de sua esposa, com as mãos manchadas de sangue após
o assassinato do rei Duncan, Macbeth, ainda impressionado com o que
acabara de fazer, afirma ter ouvido uma voz que gritava “Nunca mais
dormirás! Macbeth assassinou o sono!...” [“Sleep no more!
Macbeth
does murder sleep...”].
Dali em diante, seus dias serão vividos como num pesadelo, até a
luta final, que o levará ao sono definitivo. Foi justamente esse
clima de pesadelo, conspiração e morte que o grupo inglês
PunchDrunk pretendeu recriar em seu espetáculo Sleep
no more.
A ação foi transposta para os anos 1920/30 e, em vez de um
palácio, é um hotel que abriga a tragédia.
Na
verdade o termo correto não seria espetáculo - começa daí o
não-convencionalismo da proposta. O espectador-hóspede que lota as
sessões diárias, e que frequentemente retorna, faz o check
in
para uma experiência não só artística, mas também lúdica e até
psicológica. É preciso deixar para trás bolsas e casacos, assim
como um modo de ver e viver o teatro.
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Um conjunto de armazéns em Chelsea foi
reformado para simular um hotel, o McKittrick, com cinco andares e
cerca de cem ambientes. Uma lenda foi criada em torno dele, o que
reforça a atmosfera de suspense e de filme noir sugerida pelo grupo.
Depois
de registrados no lobby
e
de ganhar o seu cartão de acesso (uma carta de baralho), os hóspedes
são encaminhados ao Manderlay, o bar do hotel, ainda no térreo.
Gelo seco, luz baixa, música retrô e muito suspense sugerem o que
virá a seguir: uma aventura particular e consciente num
pesadelo/jogo coletivo.
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A
tensão começa quando somos proibidos de falar e se intensifica ao
sabermos que é mais seguro fazermos o percurso sozinhos. A cada um
está reservada uma máscara branca, que deverá ser usada durante
toda nossa permanência no local, do contrário, poderemos ser
confundidos com o staff
do hotel ou, pior, com algum dos personagens da tragédia. A
aceitação das regras e desse jogo de faz de conta é fundamental
para que o espetáculo se transforme em experiência, pois é a
partir disso que cada um poderá criar a sua própria narrativa,
independente daquela recriada por Shakespeare a partir de relatos
históricos, ou da releitura proposta pelo grupo.
Do
restaurante, já devidamente mascarados, somos levados por um
corredor escuro até o elevador. Um certo número de hóspedes é
deixado de andar em andar. Livres, para fazer o percurso que
quisermos, podemos seguir o primeiro personagem que passar pela nossa
frente, apreciar uma performance de dança, subir e descer escadas,
explorar as dezenas de espaços detalhadamente cenografados –
sempre sob pouca luz e com uma trilha musical bastante sugestiva.
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Assim,
conforme o trajeto dos atores ou nosso desejo de exploração, nos
vemos na enfermaria de um hospital, numa sala de jantar, num
escritório, numa botica, no ateliê de um taxidermista, num salão
de baile, numa alcova, numa ampla sala de estar, num banheiro, num
jardim abandonado, num cemitério e tantos outros espaços disponíveis à
nossa curiosidade. É possível abrir armários e gavetas, sentar-se
ou deitar-se, apreciar objetos e obras de arte, ler um livro, um
prontuário médico e até abrir a correspondência de Lady Macbeth,
enquanto uma horda de mascarados passa correndo no encalço de algum
personagem.
Ficamos
com a impressão de ter entrado em um labirinto ou na toca do
coelho de Alice. Tudo pode acontecer no instante em que abrirmos uma
porta ou que atingirmos o topo da escada. Um braço pode aparecer do
nada, impedindo determinado trajeto e, ao tentarmos escapar de um
ambiente que nos oprime, nos vemos, outra vez, na sala escura de
onde saímos há pouco. A imaginação tem papel fundamental na nossa
falta de ar e na ansiedade. Nossas referências, principalmente
cinematográficas e literárias, tratam de dar o devido tom de
terror, paixão e suspense que complementam o trabalho da encenação.
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A
ausência de texto verbal também por parte do atores abre inúmeras
possibilidades de leitura. São todos ótimos dançarinos e performers,
preparados, inclusive, para o caso de algum espectador (em geral os
que já assistiram algumas vezes) que tente contracenar ou interferir
na ação. O retorno ao hotel é estimulado pela produção, que
envia e-mails constantes convidando os antigos hóspedes, inclusive
para sessões especiais.
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A
estrutura do projeto é impressionante e conta com cerca de oitenta
colaboradores, entre artistas, cenotécnicos, seguranças e pessoal
administrativo. O esquema de acesso é inusitado: a partir das 19h é
possível hospedar-se a cada quinze minutos, desde que tenha sido
feita reserva, ou seja, a performance começa e novo público é
acrescentado periodicamente. Há também um jantar opcional, servido durante
a sessão a quem tenha feito a solicitação antecipadamente.
É
permitido sair logo que se complete a primeira hora da performance,
mas a maioria prefere permanecer até as 22h, quando a sessão é
encerrada e todos são convidados a descer para o bar do hotel, onde
haverá novas performances e shows musicais.
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Essa
mistura de teatro, dança, show e role-playing
game solicita
uma postura inusitada do espectador, que precisa estar disposto a
colaborar criativamente para a efetivação da obra. Sabemos, pelos
relatos, que há quem deteste Sleep
no more
e se diga arrependido por não ter aproveitado a noite com o Rei
Leão. São
os mesmos que afirmam não ter entendido nada, não ter conseguido
ver nada de interessante, exatamente como acontece num sem número de
espetáculos não-convencionais. O problema não está nem nos
espetáculos, nem nos espectadores. É só uma questão de preferência.
Se
você gosta do teatro tradicional, com uma boa trama, definida e
compreensível, se gosta de sentar e ser entretido, a
Broadway tem ótimas opções. E se você encara numa boa o teatro
processional, se não faz questão de uma história imediatamente apreensível, se está disposto a “trabalhar”
criativamente; se busca emoções fortes e colocar-se em
risco, ainda que imaginário, ou se está buscando viver uma
experiência diferente, é ao Hotel McKittrick , em Chelsea, que você deve ir. Macbeth espera por você para uma
noite insone.
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Informações sobre todos os horários, preços, reservas, etc:
Adélia Nicolete